Quem não consegue viver sem latidos por perto faz ideia do que seria uma existência dissociada do mundo dos cães. Respeitemos os direitos e as razões das pessoas que não os curtem, mas afastá-los de quem os ama supera o pior dos pesadelos: é o fim. A vida perde o sentido, pois transcorre em boa parte no olhar desses eternos bebês.
Minúsculos ou gigantes, ternos ou ferozes, belos ou horrendos, esses seres têm o dom de nos enternecer até mesmo quando nossos olhos simplesmente se cruzam. Muitas vezes, temos a impressão de o nosso mundo interior estar desmoronando, como em noites de tempestade lá fora nas quais certos animais domésticos paralisam com o pelo em pé depois do raio, à espera do trovão. Então, sob uma súbita calmaria, é como se nos sentíssemos observados. E nos damos conta de suas pupilas dilatadas ao máximo, deixando-nos ver até sua essência, pura como a dos humanos mais evoluídos.
Sim: projetamos também nossas expectativas até onde a vista chega, no ponto mais profundo desse olhar. Vemos o que gostaríamos, não o que realmente está exposto à nossa frente. Mas é algo mais que isso. Mais que as angústias cotidianas, mais que as perguntas sem respostas, mais que tudo, que o nada. É como se a troca funcionasse igual a uma espécie de relógio vivo. E o tempo vai voando para nós e para eles, de existência ainda mais fugaz que a nossa. Mas fazer o quê?
O escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel de Literatura, disse que cães realmente falam, mas só àqueles que sabem ouvi-los. É uma arte compreendermos em profundidade o que significam orelhas em pé, rabo abanando, latidos contínuos, sinais com potencial inclusive de indicar perigo, pois o risco de ataque está sempre à espreita. Mas é mais desafiador ainda entendermos os silêncios – os nossos e os deles. É nesse plano que a comunicação se mostra mais perturbadora, pois se dá além do mundo das palavras, dos gestos previsíveis, dos atos por interesse. Cachorros não distinguem mendigos de reis, não condicionam seus sentimentos a morar na rua ou em castelo. É isso, precisamente, o que os diferencia das pessoas.
Sabemos que tudo na vida se conecta. Os animais fazem parte dessa teia na qual nos movimentamos. Com sorte, temos o nosso primeiro cachorro ainda na infância, aquele capaz de lamber até fraldas descartadas. Depois, vem o da adolescência, com quem compartilhamos o cheiro forte dos hormônios e o do chulé nas meias. Há ainda, pelo menos, o destinado a nos acompanhar na dura passagem para a fase adulta. E assim vai indo, até nos darmos conta, surpresos, de rarearem as forças para conduzi-lo.
Quantos cães a vida vai nos proporcionar? Quantos conseguiremos acompanhar até o fim da jornada?
Com os anos, acabamos nos confundindo com os nomes, chamando até pelos que já se foram. Acordamos no meio da noite e é como se estivéssemos escutando o latido de um cusco que não, não pode estar mais por aí. Pressentimos até mesmo a sombra de um guaipeca que há décadas deixou de nos seguir. São breves e gratificantes momentos, mas que valem por uma eternidade.
Então, um dia, encaramos esse pequeno grande ser que está sendo levado pela guia como se víssemos um marcador de tempo, não de horas, minutos ou segundos. Ficamos a meditar assim, sem muita profundidade, pois sempre é cedo, e conformados, embora tudo tenha transcorrido tão rápido. Ficamos a imaginar quem, afinal, vai embarcar primeiro no olhar do outro, como quem pega carona numa nuvem, e seguir por aí, sabe-se lá por onde, e se para sempre.