A gente constata com alívio, mas sob a dor de ver a memória de um país em ruínas consumida pelas chamas, que, no nosso museu particular, o indispensável pode ser transportado sobre os ombros, com a leveza de asas de anjos.
Seres humanos pré-internet passam a vida acumulando guardados, de valor material ou emocional. São fotos nas quais já não nos reconhecemos, nem aos outros, mais prateleiras tomadas por livros e discos, feixes de cartas escritas à mão no silêncio das gavetas, lembranças esmaecidas nas profundezas da alma, quadros dos quais já não gostamos mais, imagens na memória, poeira nos móveis e nos ossos, mais os cadernos de receitas manchados de gordura, as agendas com nomes de pessoas que não teriam mais como atender se as chamássemos, os ímãs de geladeira com números de teletudo, uns potes vazios, caixas transbordando não sabemos mais o que, pois está tudo tomado, bloqueando os caminhos.
A vida, hoje, se esvai rapidamente para um outro plano, o de redes interconectadas.
E aí, num certo momento, assim do nada, nos damos conta de que a vida, nas suas manifestações físicas, passou a ter mais sentido no mundo virtual. Que os livros do escritório povoados de personagens incomparáveis às do mundo real cabem todos num pen drive. Que as músicas, incluindo as indissociáveis de diferentes fases de nossa existência, estão on demand. Que os filmes de nossa preferência podem ser buscados na rede por um preço acessível a partir do qual se erguem fortunas virtuais. Mas, se "dizem que em cada coisa uma coisa oculta mora", como nos alerta Fernando Pessoa, como é possível entender essa dimensão no mundo virtual? Pois "sim, é ela própria, a coisa sem ser oculta,/ Que mora nela". Na rede também?
Não a vemos, mas a grande nuvem da computação armazena nossos registros fotográficos, guarda as agendas telefônicas, os áudios das primeiras palavras das crianças, segredos, anotações, rabiscos e até registros dos fósseis de milhares de anos do Museu Nacional. O telefone celular nos privou do despertador que, ao tocar, se misturava aos nossos sonhos, incorporou a bússola, os mapas de nossas andanças, tornou dispensável até mesmo aquele gesto trivial de se colocar o braço para fora da janela tentando decifrar a temperatura, o nível de umidade, o lado do qual sopra o vento... De pessoas a fast-food, incluindo o significado de palavras difíceis e os verbetes de enciclopédias, tudo está hoje ao alcance de um clique.
Já não precisamos ter a maioria das coisas. Podemos simplesmente usá-las. Tudo o que nos é essencial no plano físico pode ser transportado nessa espécie de guaiaca sobre os ombros de nosso tempo. Quanto menos peso, mais longe podemos ir. E mais tempo irá nos sobrar para o realmente imprescindível, além do ar, da água, da terra da qual brota a comida, do fogo com o qual a aquecemos e tem o poder de transformar tudo em cinzas, até a memória.
Nós, que nos habituamos a cultuá-las, só não estranhamos mais o sumiço das coisas porque para tudo, hoje, há aplicativos. É só baixar. Mas nos damos conta de uma espécie de epifania também pessoana, pois é ele quem sempre salva, de que "entre mim e a vida há um vidro tênue. Que, "por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar".
Ficou ainda mais difícil tocar porque a vida, hoje, se esvai rapidamente para um outro plano, o de redes interconectadas. É impossível deter esse curso, pois tem a força de um rio cujas águas seguem sempre em frente, como um turbilhão. E aí, sozinhos, no meio do nada, nos sentimos muitas vezes tentados a ultrapassar essa fronteira translúcida como lâmina de gelo. Então, hesitamos, resistimos. Mas não vai demorar o dia em que, como o da constatação do vazio das coisas físicas, vamos alcançar a outra margem, com o mínimo de carga nas costas e sem olhar para trás.