Todo mundo sofreu junto, por instantes, quando o atacante Michy Batshuayi chutou uma bola que foi bater na sua própria cara ao celebrar o gol decisivo da seleção belga contra a da Inglaterra, na Rússia. Em seguida, a legítima videocassetada percorreu o planeta como meme, a ponto de ele mesmo se questionar nas redes sociais por que tinha sido tão estúpido.
Não chegou a tanto. Era para ser apenas a comemoração de um feito inédito no caso da Bélgica, no ambiente visceral de Copa do Mundo. A bola foi arremessada contra a rede, mas bateu na trave e voltou com o impacto de um canhonaço. O ineditismo, no caso, foi o efeito bumerangue. Qualquer pessoa, até mesmo longe de um estádio, está sempre sob o risco de ser atingida assim, de forma inesperada – no campo ou fora dele.
É como se nossos atletas nos dissessem, sem falar, que essas boladas da vida bem no meio da cara doem, mas tudo passa.
O escritor Nelson Rodrigues, para quem o futebol sempre foi algo épico, muito além de 11 atletas de cada lado obcecados meramente pelo gol, defendeu numa de suas crônicas magistrais o fim do som das bofetadas. Sim, essas que doem como uma bolada, atingem até a alma e abrem uma fenda como a de ferida sem casca. O argumento foi o de que “uma bofetada muda seria menos ultrajante”.
E, no entanto, esses golpes secos que costumamos levar, ou até mesmo nos infligir, provocam sempre estardalhaço, como era comum, até pouco tempo, em filmes e telenovelas. Armamos uma jogada e, quando ficamos à espera do grito de gol, o que percebemos é a dor do desaponto, de algo que se volta como uma bola contra nós mesmos. Às vezes, é a aposta frustrada numa pessoa. Outras, a oportunidade perdida de jogar com o vento a favor. Queremos vencer como os que passam à História, e nos confrontamos com a derrota dos obscuros.
Até nisso a Copa nos acena com sabedoria. Assim como na vida, quem disputa o Mundial vai atrás da vitória. A meta é derrotar o adversário, e esse padrão independe de país, de continente. Não é difícil, então, imaginar o sentimento de quem pressente o fim para uma seleção de talentos – a síntese do que uma nação tem de melhor no futebol.
Ainda assim, tem quem faça bonito na Rússia ao se dar conta de estar voltando para casa. O Senegal, por exemplo. Os senegaleses jogaram o melhor que podiam. Nem se queixaram de ter perdido a oportunidade por um estranho critério de número de cartões. O Marrocos e o Peru saíram derrotados, mas sob aplausos, como se tivessem vencido. Perderam o jogo, mas não a altivez. Não a dignidade, a confiança na vida e nos seres humanos.
Muitos dos jogadores que amargaram a derrota na Rússia são exemplos isolados de superação. Basta citar Cristiano Ronaldo e Lionel Messi. O que dizer, então, do fato de seis de 11 titulares da Seleção Brasileira terem crescido sem o apoio de uma figura paterna?
Pois até nisso nossos atletas são uma síntese do Brasil. No nosso país do futebol, 40% dos lares estão sob o comando de mulheres. Milhões delas sequer contam com uma presença masculina para ajudar na criação dos filhos.
Pode haver pancada maior na vida de quem prospera sem o apoio de um pai? Pior que sim, pois desgraça não tem limite, principalmente quando associada à pobreza ou mesmo à miséria. E essa é uma condição comum à maioria deles.
Nem todos os gênios da bola conseguirão chamar a atenção para o seu talento. Muitos deles passarão incógnitos da idade de atuar profissionalmente nessa carreira tão efêmera.
Quem está na Rússia defendendo nossas cores, porém, nos manda um recado que vai além da obsessão por fazer gol. Um gênio da crônica e da dramaturgia como Nelson Rodrigues teria mais facilidade de captar e descrever. De forma resumida e sem muita encenação, é como se nossos atletas nos dissessem, sem falar, que essas boladas da vida bem no meio da cara doem, mas tudo passa.