A série Tesouros farrapos
1ª reportagem (8 de setembro): "O enigma fotográfico de Bento Gonçalves"
2ª reportagem (9 de setembro): "Espada usada em duelo contra Bento Gonçalves é guardada como relíquia"
3ª reportagem (10 de setembro): "A urna de votos que elegeram Bento Gonçalves"
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Guardadas como tesouros por descendentes ou exibidas como preciosidades em museus, relíquias de todos os tipos ajudam a reforçar o culto à Revolução Farroupilha. Até o dia 17, por meio de 10 objetos selecionados por ZH, capítulos desta história serão resgatados. Nesta quarta reportagem, o documento para "estrangeiros" transitarem em território Rio-Grandense.
Parece piada bairrista, mas no tempo da República Rio-grandense os brasileiros realmente precisavam de passaporte para cruzar as fronteiras. O detalhe é que a definição de estrangeiro era bem mais ampla. Até moradores de Porto Alegre eram considerados de fora da nação, porque a cidade estava sob o domínio imperial.
VÍDEO: a expedição atrás de relíquias
Um dos raros exemplares do documento que vigorou enquanto o Estado funcionou como um território independente está guardado na Bibliotheca Pública Pelotense, fundada em 1875. Marcado em alto relevo com sinete do brasão da República, uma folha de papel tamanho ofício cumpria a função de identificar os forasteiros que adentravam no território farrapo.
O passaporte era conferido pelo então "ministro e secretário de Estado dos negócios do Interior e Fazenda, interinamente encarregado da Justiça", Domingos José de Almeida. Como na época não existia fotografia, os usuários do passaporte eram submetidos a uma descrição minuciosa, a começar pela cor, além de questões sobre a estatura, os cabelos, o formato do rosto e de nariz, a existência ou não de barba e de outros sinais. Tradicionalmente, quem usava barba eram os imperiais.
- O sexo do indivíduo não consta, porque eram só homens que podiam portar passaporte - observa o historiador Daniel Barbier, da Bibliotheca Pública Pelotense.
Em seu livro República Rio-grandense: Realidade e Utopia, o historiador Moacyr Flores descreve que o uso de passaportes foi instituído por um decreto feito em 12 de dezembro de 1839, quando José Mariano de Matos estava em exercício da presidência. Preocupado com a entrada de espiões e assassinos, o governo obrigou o uso do documento a todos que ingressassem no interior do Estado.
- O passaporte era para todos os que não aderiram à República transitarem na área dos farrapos. Quem morasse em uma cidade imperial e quisesse atravessar a campanha, mesmo tendo nascido no Rio Grande, tinha de apresentar o documento. Por exemplo, quem quisesse sair de Porto Alegre e atravessar o Rio Jacuí tinha de pedir o passaporte - conta Flores.
Segundo o pesquisador, o passaporte era apenas ideológico, não sendo reconhecido pelo Brasil nem por outros países. Servia mais como um salvo-conduto interno, para identificar aqueles que não fossem ligados à República.
Além de Porto Alegre, eram territórios majoritariamente imperiais as cidades de Rio Pardo, Pelotas, Rio Grande e até Caçapava, que teria sido uma Capital farroupilha "à força".
- Essas cidades eram antifarroupilhas porque a revolução prejudicava o comércio. Os farrapos não tinham quartéis e chegavam fazendo saques, entravam nas fazendas e levavam os animais, ou cortavam a língua para enfraquecer os inimigos. Hoje todos os gaúchos são farrapos, mas naquela época eram minoria - salienta Flores, lembrando que 85% da população era analfabeta e não acompanhou a revolução, liderada por estancieiros e acompanhada por peões que trabalhavam com eles.
No jornal O Povo, o órgão de comunicação oficial farrapo, que começou a circular em 1838, a visão sobre o estrangeiro ficava clara na divisão de notícias. Na sessão "Exterior", se liam informações de cidades como o Rio de Janeiro e a Bahia, lá naquele outro país chamado Brasil.