Descobri João Cabral de Melo Neto pelo poema O Cão sem Plumas. Era o começo dos anos 1990, e eu fazia parte de um grupo de amigos que se reunia de tempos em tempos para ler, beber e descobrir autores novos que a turma andava lendo (com frequência, mais o segundo do que os outros dois). Em uma dessas reuniões, levei O Cão sem Plumas para o encontro e foi um sucesso – o que, em uma roda literária, significa que a pequena plateia não apenas não bocejou como pediu bis ("O que vive fere./ O homem, / porque vive, / choca com o que vive. / Viver / é ir entre o que vive."). Como a mim e aos meus amigos, esse poema só lâmina marcou também a coreógrafa Deborah Colker – a ponto de ela lançar-se ao desafio de transformar o texto em um espetáculo de dança. O resultado está em cartaz, hoje e amanhã, em Porto Alegre. (Leia mais no Segundo Caderno.)
O espetáculo de Deborah Colker chega ao teatro em um ano especialmente poético – pelo menos no cinema. Quatro filmes que estrearam em Porto Alegre nos últimos meses celebraram não apenas a palavra escrita, mas sua forma mais sofisticada e exigente, a poesia. O ótimo Patterson, de Jim Jarmusch, narra a história de um motorista de ônibus (Adam Driver) que se distrai – e abstrai – do cotidiano fisicamente extenuante e repetitivo da profissão escrevendo poesias. (Os belos textos que ouvimos e lemos na tela são do poeta americano Ron Padgett, alguns deles escritos especialmente para o filme.) Neruda, de Pablo Larraín, com Gael García Bernal no papel principal, e Além das Palavras, filme de Terence Davies sobre a americana Emily Dickinson, são cinebiografias de poetas consagrados. Já o delicado, comovente e imperdível Quem é Primavera das Neves, de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, ainda em cartaz na cidade, é uma cinebiografia de uma poeta desconhecida que passou boa parte da vida traduzindo a poesia alheia.
Poesia Numa Hora Dessas?! é o título de uma seção que Luis Fernando Verissimo vem publicando, já há alguns anos, em jornais e revistas – coleção reunida em livro, em 2010, pela editora Objetiva. A sacada genial do Verissimo é que a questão/reafirmação "numa hora dessas?!", quando nos referimos à poesia, adapta-se a todas as horas e nunca corre o risco de soar anacrônica. Isso porque, para muita gente, a arte é sempre um convidado estabanado que aparece cantarolando na festa sem perceber que o teto e as paredes em volta estão desabando.
Por sorte, para muitos outros, a poesia é exatamente o que nos ajuda a permanecer lúcidos enquanto o céu e o chão parecem desabar. O que vive fere, mas, para viver, é preciso estar entre o que vive.