A gente não consegue nem concluir as obras no cais do porto, mas nesse caso não tem discussão: uma área pública tão nobre de Porto Alegre precisa ser devolvida logo, para o bem-estar de todos os gaúchos. Não importa como: tem que ser já, no mínimo pelo significado histórico do Guaíba e por suas ligações com nossa memória afetiva.
O Rio Grande do Sul levou décadas para livrar Porto Alegre de uma orla tomada por rampas improvisadas, trapiches e pontos de atracação. Quando conseguiu, finalmente, concluir seu porto, fechou-o em tempo recorde. É esse o nosso jeito de ser, mas aquele portão de vitrais estilosos, por onde a cidade dava boas-vindas aos visitantes, não pode continuar atrás dos muros, sem uso.
Que tempos aqueles, nos quais se podia circular por aí de barco, mas já os esquecemos – do tempo e do barco. Quem precisar hoje de transporte público para ir, digamos, até a Ilha da Pólvora, bem na frente do cais trancado por dentro, não vai encontrar. Há uma alternativa até Guaíba, há umas embarcações com tarifa cara até para turista que costeiam ilhas alagadiças, povoadas de forma desordenada, e só.
A Ilha da Pólvora, símbolo de uma época em que nos defendíamos de possíveis invasores com canhões, está abandonada. Se insistirmos em percorrê-la, não teremos como atracar em suas margens numa balsa paga com o mesmo cartão do ônibus. A água que falta nas torneiras e jorra como torrente no Delta do Jacuí só é navegável para quem pode manter o seu próprio barco. É da nossa cultura.
Pouco ligamos para o Farol de Itapuã, que presenciou tantas de nossas bravuras no passado. Conflitos entre legalistas e farrapos que dificultavam a passagem de navios imperiais, por exemplo. Pelo local, em pleno Brasil Colônia, cruzaram naturalistas como o francês Auguste de Saint-Hilaire. O maluco deixou aulas imperdíveis, pois viajava anotando tudo. Mas quem se importa?
A região é mais propícia para aprendizado do que muito ambiente mofento de escola. Por todo lado, ficaram marcas dos colonizadores e das tribos silenciadas que os antecederam. Há bugios em alvoroço nas matas e morros, biguás com as asas estendidas para secá-las ao sol. Falta é o acesso por via fluvial, em linha regular.
Foi ao chegar à Lagoa dos Patos que o bravo Saint-Hilaire anotou em seu diário um "certo pavor" em relação à barra de Rio Grande. Quase ninguém lembra mais da luta dos gaúchos para ampliar os molhes de seu porto marítimo, tornando-o seguro. Significou um marco para a abertura econômica do Estado. Mas o que aprendemos com o mundo desde então? Gerações vêm e vão, e não conseguimos sequer transformar cais abandonado em mísera área de lazer.
Que bom que delirar ainda é tolerado. Temos o direito de querer chegar ao nosso destino por água, com o vento batendo na cara, em barco pago com o TRI. Passeio bom é aquele em que se curte também o trajeto.
Podemos começar liberando nossas fantasias, mas ancorando-as na realidade. É tempo de democratizar o Guaíba. É hora de fazer com que seu leito possa atrair multidões, viabilizando o sonho.