Sempre que o verão se ensaia, ficamos a nos perguntar qual o motivo de termos povoado nosso solo a partir das margens do Guaíba, não dessa imensa faixa de areia do Atlântico Sul. Com o clima desta época, abafado como o de caldeirão tampado sobre fogo-fátuo, não foi porque o mar é marrom, porque a água contém o frio das geleiras polares, ou porque as dunas se remodelam a todo instante pela força dos ventos. A explicação tem a ver com a nossa valentia. Sim, com essa mesma coragem sem a qual não se sobrevive nas lides do campo nem nas guerras por território, hoje de tão pouca serventia.
Passamos quase dois séculos de nossa história, tão curta e tão recente, lutando. Quem chegou depois dos índios, expulso de Rio Grande pelos espanhóis, ficou por um período até em Viamão. Imagine escorregar para cima e para baixo, na época, pela Lomba do Sabão sem asfalto. Era muito mais fácil e rápido se deslocar por água para as regiões em luta. Então, ocupamos as margens do Guaíba. Construímos muros e fossos com suportes para canhões. Erguemos portões. Nos trancamos por dentro. E estamos nessa condição até hoje: sem mar, mesmo escuro e gélido, sob este clima.
Houve uma época de férias longas e muitas crianças em que se ia ao Litoral para ficar – às vezes, até a Páscoa. Os dias iluminados e as noites frescas pareciam infinitos, mas tudo muda. Os hábitos também.
E aí que, agora, por excesso de trabalho ou insuficiência de dinheiro, ficamos torrando mais tempo do que gostaríamos numa cidade com Rua da Praia sem praia, com Praia de Belas só com as belas, com chafarizes que são obras-primas da arte em ferro, mas secos. Mais esse mundo de água em volta, sem condições de banho na orla a não ser muito além de tudo, sob esse sufoco.
Já não temos mais sequer a opção de nos refrescar na Sbornia das temporadas de verão com o sempre eterno Nico Nicolaiewsky para não derretermos “feito um picolé ao sol”. Ficamos a cantar, como Nei Lisboa: “Come on, baby, vamos passar/ Um bom verão em Calcutá/ Ao som do mar”...
Haja imaginação e ar-condicionado de shopping, sorvete no mercado, mate quente, água gelada, glaciares azuis se dissolvendo no oceano em direção ao Norte. Tudo ferve nesse ambiente opressivo, até a cabeça e as ideias que ela contém.
Ficamos tentados a usar a dita valentia, que é o nosso carma, para derrubar o calor, assim como quem subjuga touro bravo com boleadeira. Bem assim como quem aponta a adaga contra a miragem de um inimigo à nossa frente, gerada pela temperatura infernal. Mas essa é a pior entre as nossas tantas batalhas.
Quem fica em Porto Alegre na estação precisa sonhar acordado com o mar para sobreviver. O oceano é o nosso delírio quando o sol torra tudo, da pele aos neurônios. E, aí, é como se aproximássemos uma concha do ouvido. E, em vez de escutar a onda batendo na pedra, víssemos a espuma branca refrescando nossos pés na areia.
Vencemos o inimigo. Esta terra tem dono, como berrou aos céus nosso herói da resistência e candidato a santo Sepé Tiaraju. É a quem nos resta recorrer: venceremos também o calor – nós, os pobres sem-praia?