Quantas vezes, tantas, saltamos da cama sob os solavancos do nosso próprio coração numa hora difusa entre a noite e a madrugada, entre o sono e a vigília, entre o sonho e a realidade, como se tivéssemos ouvido o tropel de um cavalo em plena área urbana? Os cavalos que hoje parecem galopar no nosso inconsciente foram substituídos por motores e já não servem mais como mensageiros num mundo conectado pela tecnologia. Ainda assim, seguem balançando suas crinas na memória afetiva de todos nós, gaúchos. É como se insistissem em lembrar que sobre eles, desde os tempos de Sepé Tiaraju aos gritos de esta terra tem dono, travamos algumas de nossas batalhas internas e externas mais devastadoras. Assim conquistamos o que hoje é o Rio Grande, gostemos ou não dos resultados.
Giuseppe Garibaldi, depois de arrastar barcos gigantes por terras farroupilhas para além do Capivari, garantia na volta à Europa: "Se eu dispusesse da cavalaria rio-grandense, me animaria a conquistar o mundo". Nós a tínhamos, a cavalaria, numa época em que imaginávamos transpor para longe nossas façanhas. Mas não conseguimos sequer aproveitar esse pedaço de chão conquistado sobre patas para beneficiar a todos os seres.
Ficamos longe de até onde poderíamos ter ido como cavaleiro e montaria, indivisíveis. Não sabemos exatamente por que, mas nos percebemos hoje indissociáveis, como essas estátuas equestres em bronze veneradas em boa parte do planeta.
Cyro Martins transpôs para a literatura o processo no qual perdemos a condição de monarca das coxilhas. Nos transformamos em gaúcho a pé, de ônibus, sem barco nem trem, nem metrô, nem bonde, sem o solo para o sustento e sem alternativas de sobrevivência nas cidades. Xico Stockinger nos fundiu bravamente em ferro como guerreiros altivos – o homem e o animal como algo só, na infinitude do pampa. Nelson Jungbluth pintou cavalo e cavaleiros com todas as cores dos tempos gloriosos dos calendários da Varig, arredondando-os nas formas.
A herança equina ficou para sempre em nosso jeito gaúcho de ser, de sentir, em nossa música, vocabulário e figuras de linguagem. O legado expõe também o nosso trato nem sempre afável com os animais, a nossa insistência em subjugá-los. É isso o que nos leva, nas horas ermas, a termos a impressão de ouvir o relinchar muito próximo. Um dia, perceberemos o focinho suado na nuca. Um sopro gelado. E o arrepio, os pelos em pé da nossa aspereza.
O tempo e o vento passaram diante de nosso olhar coletivo, mas seguimos como Guedali Tartakovsky, O Centauro no Jardim, de Moacyr Scliar – metade ser humano, metade animal. O livro, que nem a vida, nos joga na cara o sofrimento necessário para nos livrarmos desse lado incômodo, que nos faz provocar nos outros um permanente estranhamento. Conseguiremos?
Os cavalos significam hoje muito mais do que razão para orgulho quando os exibimos em rodeios e feiras. Nossos aliados ancestrais, quase parte de nós mesmos, nos dão a dimensão do que fomos e do que somos, mas também do que podemos ser quando galopamos livres pela mente.