Reportagens do Grupo de Investigação da RBS (GDI) revelaram que milhares de livros e equipamentos tecnológicos comprados em 2022 pela Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) estão sem uso, empilhados em escolas e também em um galpão de patrimônio do município. O depósito fica na Rua Olavo Bilac, no bairro Santana, contendo cadernos escolares, livros, chromebooks, computadores com identificação da marca Think e dezenas de caixas de kits pedagógicos da Mind Lab. Parte do material está acondicionada precariamente, sob fezes de aves.
Em novembro de 2021, o prefeito Sebastião Melo fez vistoria no local. Em reportagem publicada no site da prefeitura, Melo anunciou a abertura de procedimentos internos para apurar a situação, que já era de deterioração. À época, o prefeito declarou:
— Não vamos admitir o mau uso do dinheiro público. Vamos abrir uma série de expedientes para averiguar se ocorreram ou não irregularidades. Providências urgentes serão tomadas para termos uma melhor entrega para a população.
Passado um ano e meio do anúncio, o desperdício segue. Questionada pela reportagem, a Smed disse, nesta terça-feira (6), ter apenas a informação de que os expedientes anunciados em 2021 seguem em tramitação sigilosa na Procuradoria-Geral do Município (PGM).
A maior parte de caixas estocadas no galpão da Smed é de livros fornecidos pela Inca Tecnologia de Produtos e Serviços. Essa empresa, sozinha, recebeu pagamentos de R$ 27,6 milhões da prefeitura em 2022 para o fornecimento dos livros. As embalagens estão empilhadas em diferentes pontos do imóvel, de grandes proporções e parcialmente tomado por quinquilharia, como uma montanha de ferro retorcido e cadeiras velhas. No dia da visita, havia garrafas de álcool espalhadas pelo chão, em meio a milhares de embalagens de papelão.
Chamava a atenção uma caixa de livros da empresa Inca sobre uma escrivaninha, contendo à frente um bilhete em letras garrafais: "OBS: ESCOLA NÃO QUIS RECEBER. DEVOLVIDO. 10/05/2023".
Em 26 de maio, cerca de 850 chromebooks comprados há mais de um ano, em março de 2022, por R$ 1,6 milhão, estavam parados no galpão. O custo unitário desse equipamento foi de R$ 1.984,00. Compensados foram colocados sobre uma parte dos aparelhos para aparar as fezes de pombos, mas algumas das caixas permaneciam desprotegidas. Kits de iniciação científica da Lego, pelo aspecto imundo das caixas, aparentavam estar há bastante tempo no local.
Mas nada superava a sujeira sobre uma quantidade de caixas de cadernos de 96 folhas sem uso. As embalagens, que contêm a identificação "Moa", estavam cobertas por crostas de fezes de animais.
Depois que equipe do GDI esteve no local, a Smed determinou que fosse feita limpeza e afastou três funcionários do depósito. Foi o que a secretaria informou na terça-feira (6). A titular da Smed, Sônia Maria Oliveira da Rosa, disse que uma licitação será lançada para a realização de reforma no galpão em que os materiais estão acondicionados. Ela destaca que a verba orçamentária já está reservada para o investimento.
Almoxarifado
No galpão de almoxarifado da Smed, na Lomba do Pinheiro, o GDI flagrou um micro-ônibus escolar equipado com plataforma de acessibilidade para cadeirante abandonado sob o tempo. Uma janela do veículo estava quebrada, enquanto sua parte dianteira apresentava sinais de deterioração.
Conforme a Smed, o veículo foi adquirido em 2018, com recursos federais. Por ser um micro-ônibus, de pequeno porte, a pasta avalia que ele não teria utilidade para a rede municipal de ensino, que tem mais de 42 mil alunos. A decisão da prefeitura, anunciada para a reportagem, foi a de doar o veículo para a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc).
Aquisições no contexto da pandemia
As compras realizadas pela Smed em 2022 ocorreram no contexto pós-pandemia de coronavírus. A legislação prevê que os municípios devem investir o percentual mínimo de 25% da receita corrente líquida em educação. Isso não ocorreu em 2021 em Porto Alegre e em diversos outros municípios brasileiros, que alegaram dificuldade em executar o orçamento com as aulas suspensas em razão da covid.
O Congresso aprovou a emenda constitucional 119/2022, cujo texto diz que os agentes públicos dos níveis municipal, estadual e federal não poderiam ser punidos por terem descumprido o investimento mínimo de 25% em educação nos anos de 2020 e 2021.
Ainda ficou determinado que os valores que "sobraram" nos dois anos mais críticos da pandemia deveriam ser aplicados em educação até o exercício de 2023, como forma de compensação. Foi neste contexto que a Smed realizou as compras relatadas nas reportagens do GDI ao longo de 2022, muitas delas por inexigibilidade de licitação ou por adesão à ata de registro de preço, o que é chamado de carona.
— Houve um farto recurso na educação. Foi aplicado na prioridade mais adequada? É como ter um monte de dinheiro e comprar uma Ferrari, mas a tua casa está caindo aos pedaços e tua família não está se alimentando bem — diz a vereadora Mari Pimentel (Novo), que tem visitado instituições de ensino da Capital para conferir o aproveitamento dos equipamentos comprados com recursos públicos.
Professor licenciado da rede municipal, o vereador Alex Fraga (PSOL) também tem percorrido escolas para levantar problemas:
— Precisamos de investimentos nas escolas, estruturas e equipamentos, mas é necessário ter critério. Estão torrando dinheiro com verbas que seriam importantes se fossem de aplicação planejada. São compras indiscriminadas de recursos tecnológicos e livros. Material parado é um desperdício de recurso público e um estorvo para a escola, que tem de depositar em algum lugar.
Sônia, titular da Smed, defendeu as compras realizadas para a rede municipal em 2022. No caso dos livros, ela afirma que são materiais que incluem o estudante em "novas competências" do século 21, em referência às coleções de educação financeira e consumo, empreendedorismo e projetos de vida e educação ambiental.
— Nós trabalhamos na perspectiva de qual o melhor material que atende hoje no Brasil em termos de recuperação das aprendizagens. Investir em educação e material pedagógico que realmente dê conta desses processos de aprendizagem é o que nós fizemos com planejamento — afirmou Sônia.