Treze dias antes de assinar o contrato da compra de 15 novos trens, a Trensurb concordou em abrir mão de testes que poderiam ter identificado e evitado problemas que impedem, hoje, o uso da maior parte dessa frota. Os veículos, adquiridos em 2012 por R$ 244 milhões e recebidos em 2014, nunca funcionaram como deveriam: por problemas técnicos graves, apenas seis trens novos estão em operação.
Em reportagem publicada em maio, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) revelou que os veículos comprados do Consórcio FrotaPoa (empresas Alstom e CAF) apresentam desde falhas nas rodas até infiltração nos rolamentos. Novos documentos obtidos pelo GDI mostram que a Trensurb optou por não fazer a validação final do projeto do trem.
A ata de uma reunião que ocorreu nos dias 12 e 13 de novembro de 2012 mostra que a Alstom propõe que "testes e certificações solicitados na Especificação Técnica e já realizados em produtos similares serão reconhecidos pela Trensurb como comprovação de performance por similaridade". Ao aceitar a sugestão, a Trensurb abriu mão de fazer ensaios dinâmicos na via em que operariam. Segundo a avaliação atual dos próprios técnicos da empresa, são testes decisivos que, entre outros aspectos, analisam o comportamento do trem em curvas.
A Trensurb concordou em fazer apenas um teste mais simples — a análise matemática dos trens do Consórcio FrotaPoa por similaridade com um modelo da série 9000 da Alstom que rodava na Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) de São Paulo. Se os trens fossem exatamente iguais, a análise teria um resultado muito próximo e não seriam necessários ensaios dinâmicos na via. Porém, não foi esse o caso. Isso porque o modelo de trem fornecido para Porto Alegre foi feito especialmente para a Trensurb — ou seja, não havia a similaridade alegada no contrato. Além disso, nos trens de São Paulo a Alstom fabrica tanto a carroceria quanto o truque. Para a Trensurb, a carroceria é da Alstom e o truque, da CAF — união de dois produtos diferentes que formam um trem inédito. A fixação da carroceria com o truque foi, inclusive, um dos principais problemas identificados quando a frota entrou em operação na Capital.
O erro de 2012 foi reconhecido pela Trensurb em abril deste ano em um relatório assinado por 12 técnicos da empresa e apresentado para o Conselho de Administração. "A comprovação de performance por similaridade não pode ser aplicada ao caso", diz o documento. O estudo aponta que "os maiores problemas enfrentados pelos trens se concentram na questão da interface da caixa Alstom com truque CAF, uma combinação inédita e não consagrada, que exige testes e certificações específicos." Os técnicos insistem que, ao contrário do que a Alstom argumentou em 2012, os ensaios matemáticos não são suficientes.
Se os testes tivessem sido feitos na época da entrega, teria sido possível identificar, por exemplo, o problema de distribuição de cargas dos trens. O nivelamento do carro identifica se há má distribuição da carga — nenhum trem desnivelado pode operar. Há veículos, porém, que não passaram nessa verificação. Se isso tivesse sido identificado na época da entrega, poderia ter sido corrigido antes.
O relatório mostra também que os ensaios de carga, feitos na fábrica, foram executados só no carro reboque (o mais leve) — para maior precisão, deveriam ter sido feitos também no carro motor, mais pesado. Cada trem é composto por dois carros reboques e dois carros motores.
Devido a sua complexidade, os ensaios dinâmicos na via levam cerca de dois meses para serem concluídos. Os técnicos da Trensurb consideram os testes tão imprescindíveis que, mesmo quase quatro anos após a entrega dos trens, ainda pretendem executá-los nos próximos seis meses.
No relatório, os técnicos recomendam ao Conselho de Administração que seja contratado "um serviço para avaliar o prejuízo financeiro" causado por inconformidades entre o contrato e os trens. Sugerem, inclusive, a devolução dos trens ao fabricante.
Mais de um terço dos pedidos de fabricante causou prejuízos
Na mesma reunião de novembro de 2012, a Trensurb acatou outros 33 pedidos de alterações nas especificações técnicas propostos pela Alstom. Um deles trata da dimensões dos carros. A Alstom pediu, na época, que o carro motor passasse de 22.150 milímetros para 21.960 milímetros e o carro reboque de 22.100 para 20.610 milímetros.
O relatório feito em 2018 por técnicos da empresa mostra que 39% das decisões da reunião representaram prejuízo técnico aos trens, e 30% geraram prejuízos também econômicos.
A ata da reunião de 2012 com todas as concessões feitas pela Trensurb foi assinada pelo então superintendente de Desenvolvimento e Expansão, Ernani Fagundes, pelo gerente de Desenvolvimento de Engenharia, Sidemar Francisco da Silva e pelo de engenharia de Sistemas e Inovação Tecnológica, Paulo Roberto Lucktemeier. O contrato de aquisição dos 15 trens foi assinado 13 dias após a reunião. Em 26 de novembro de 2012, a Trensurb comprou a frota.
Mudanças prejudiciais
- Redução nas dimensões dos carros: de 22.150 milímetros para 21.960 milímetros no carro motor e de 22.100 para 20.610 milímetros no carro reboque.
- Redução nos pantógrafos, de quatro para dois por trem. Com isso, os trens ficam com menos área de contato com a rede elétrica, menor flexibilidade operacional e restrições de manobras no pátio.
- Uso de um material mais frágil na confecção das caixas sob estrado
- Acionamento manual para abertura e fechamento das janelas, em vez de elétrico com sensor de segurança, como previa o edital.
- O edital também solicitava a instalação de duas câmeras infravermelho por cabine de condutor. A Alstom avisou que não instalaria os equipamentos, e a Trensurb não contestou.
MPF incluirá informações em ação mudanças prejudiciais
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou inquérito civil em maio de 2016 para apurar se as composições estavam sendo adequadamente mantidas e operadas. A investigação será a base de uma ação por improbidade administrativa contra os fabricantes e as autoridades públicas que compraram os trens.
As informações do relatório dos técnicos da Trensurb, reveladas nesta reportagem, serão anexadas à ação. Os procuradores cogitam exigir a devolução dos R$ 244 milhões aplicados na nova frota de veículos da Trensurb e indenização pelas perdas dos usuários com as viagens interrompidas — valor ainda não está calculado.
O procurador da República Celso Três afirma que vai intimar a Trensurb a responder porque abriu mão de ensaios dinâmicos e de outros 33 pedidos de alterações nas especificações técnicas propostos pela Alstom.
— Se não tem justificativa para ter abdicado do testes, evidencia-se improbidade técnica. Igualmente, intimaremos a Trensurb para justificar porque abriu mão de tantas especificações técnicas. Em princípio, estranha-se, podendo indicar improbidade com exigências técnicas — diz.
Contrapontos
Trensurb
A empresa se manifestou em nota:
"As questões levantadas baseadas no relatório produzido pela área técnica em abril deste ano, assim como todas as informações pertinentes a esse processo, foram entregues ao Ministério Público Federal que acompanha todo o processo que envolve o recall dos trens série 200. Quanto à Trensurb, cabe exigir o cumprimento do contrato de aquisição dos trens, além de aplicar multas ao consórcio fornecedor, assim como exigir a entrega plena dos trens e em condições de operação".
Ernani Fagundes
Não respondeu aos pedidos de entrevista.
Sidemar Francisco da Silva
Considera que não houve descuido por parte da Trensurb em abrir mão dos testes e afirma que, na época, a avaliação técnica foi de que apenas os testes matemáticos eram suficientes. "Tem coisas que a gente só vai ver depois que acontece. O que foi tratado na ata daquela reunião não é a raiz do problema de fornecimento dos trens. Ninguém esperava que o consórcio não fosse entregar o produto como tinha sido combinado. É uma decepção pra nós porque teve um momento em que a gente achou que estava tudo ótimo: eles produziram os trens dentro dos prazos, os trens começaram a rodar e de repente apareceu defeito."
Paulo Roberto Lucktemeier
Procurado pelo GDI por telefone, preferiu não se manifestar.