Porto Alegre tem uma frota de trens encalhada. Comprados por R$ 244 milhões para trazer conforto ao usuário e economia de energia para a Trensurb, os 15 veículos de transporte fornecidos pelas empresas Alstom e CAF (que formam o Consórcio FrotaPoa) nunca funcionaram ao mesmo tempo desde que o primeiro entrou em circulação, em setembro de 2014.
Uma coleção de problemas técnicos impede que os 180 mil usuários diários do trem que liga a Capital a Novo Hamburgo tenham um serviço mais confortável — principal promessa na época da compra. Peças que deveriam durar 1 milhão de quilômetros precisam ser trocadas após 20 mil quilômetros de uso (2% do tempo previsto). Botões de comando na cabine afrouxam com o tempo. Até a compatibilidade das rodas com os trilhos está em xeque. No momento, 11 composições estão estacionadas no pátio.
E os quatro trens que estão rodando deixam passageiros na mão com frequência. Na manhã de 11 de maio, por volta das 7h, chovia fraco em Novo Hamburgo quando o trem 228, lotado, precisou ser evacuado na estação Santo Afonso. As rodas começaram a escorregar sobre os trilhos molhados e os freios não responderam à demanda necessária para evitar que patinassem sobre a pista. E não se trata de um problema pontual. Desde 2014, os novos equipamentos precisaram ser evacuados 106 vezes por problemas técnicos que não permitem a continuação da viagem.
Por que um investimento milionário da Trensurb resultou em tantos problemas? O Grupo de Investigação da RBS (GDI) foi atrás das respostas. Ouviu especialistas e funcionários da companhia — estes, sob a condição de permanecerem anônimos. Por meio de pedidos via Lei de Acesso à Informação e documentos oficiais, o GDI obteve trocas de correspondências e atas de reuniões entre a Trensurb e o Consórcio FrotaPoa realizadas entre abril de 2016 e março de 2018.
Elas detalham problemas graves nos trens, comprados para rodar por 30 anos. São falhas nos rolamentos das rodas, infiltração de água, vazamento em amortecedores, falta de vedação da caixa de graxa, deformação das bolsas de ar (responsáveis por garantir a estabilização do veículo), deterioração nos batentes laterais e problemas na fixação dos carros com o truque (a plataforma sobre a qual a carroceria é assentada). Todos itens fundamentais para a segurança dos trens. Os documentos analisados pelo GDI citam pelo menos 20 problemas diferentes, dos quais a maior parte se concentra nos truques:
— Todo problema no truque é perigoso, porque ele sustenta o carro que leva os passageiros. Qualquer problema desse pode ocasionar um descarrilamento. Tem muita coisa que precisa trocar peça, e o consórcio resiste. Não sei como dá tanto enguiço com trem que funcionou tão pouco tempo — questiona um experiente profissional da manutenção da Trensurb.
Especialistas ouvidos pelo GDI apontam que essa quantidade de problemas pode estar relacionada a falhas de projeto, fabricação e à qualidade dos componentes usados:
— Qualquer problema que seja de fabricação é grave. Se não tem qualidade, é porque não houve inspeção rigorosa na aceitação dos trens. O que me preocupa mais são que todos esses problemas influenciam na segurança da circulação do trem — avalia o engenheiro elétrico Peter Alouche, consultor especialista em tecnologia metroviária, com experiência de 35 anos na gestão do Metrô de São Paulo. Ele foi o responsável pela coordenação de todos os testes de aceitação da linha 1 do metrô de São Paulo, em 1974 e que operam até hoje.
Os truques foram feitos na Espanha pela CAF e as carrocerias, montadas na fábrica da Alstom em São Paulo. No consórcio, a Alstom tem 87,3% de participação e a CAF, 12,7%. Na época, a compra foi avalizada pelo então diretor-presidente, Humberto Kasper.
Contrapontos
O que diz o consórcio Frotapoa, em nota:
"O Consórcio Frota Poa está engajado em restabelecer o funcionamento dos trens que se encontram em recall, em pleno cumprimento do cronograma apresentado à Trensurb e das especificações técnicas previstas em contrato. Desde a aprovação do plano de trabalho, que prevê mobilização in loco de equipes dedicadas e apoio remoto de técnicos e engenheiros baseados em São Paulo e na Europa, já foram liberados sete trens requalificados, todos à disposição da Trensurb e da população."
O que diz o ex-diretor-presidente da Trensurb Humberto Kasper:
Responsável por assinar o contrato da compra dos trens em novembro de 2012, na época em que esteve à frente da Trensurb, Humberto Kasper afirma que tem conhecimento de que ocorreram problemas, inclusive "em outras cidades". O ex-diretor-presidente diz acreditar que "as especificações técnicas feitas pelos funcionários técnicos seguiu os padrões normais de qualquer contrato de trem" e prefere se "reservar ao direito de não dar nenhuma opinião técnica" por estar "há muito tempo afastado de qualquer acompanhamento desse assunto". Kasper ainda relata que trata-se de "empresas de renome": "Acredito que se as empresas tiverem boa vontade, elas têm condições de resolver". E finaliza: "Me sinto, como cidadão e funcionário, extremamente frustrado com a falta de consideração dessas empresas com o produto que entregaram."
Gestão atual da Trensurb cita "erros grosseiros"
Em uma hora e meia de conversa com o GDI, o presidente da Trensurb, David Borille, à frente do cargo desde fevereiro de 2017, e o superintendente de Desenvolvimento e Expansão, Eurico de Castro Faria, admitiram problemas de qualidade nos novos trens e "erros grosseiros" em alguns equipamentos.
Ambos não estavam na direção da empresa em 2012, época da compra — Borille se aposentou em 2008 e foi convidado para retornar à presidência em 2017 —, mas avaliam que a Trensurb fez um mau negócio e que, se fossem fazer a compra hoje, a executariam de forma diferente. Devido a não operação das novas composições, hoje a Trensurb gasta mais que o esperado em energia elétrica com os trens e opera no limite.
— Se não tivermos esses trens operando, vamos começar a não atender a grade de horários — avisa Borille.
Borille admite todos os defeitos revelados ao GDI.
— Os trens estragam porque apareceram problemas que talvez não foram previstos nem pelo fornecedor. A CAF diz que esses trens rodam no metrô da Espanha e que não há problema de infiltração de água, só que aqui eles estão operando a céu aberto. Problemas que eles não enfrentam lá, passaram a enfrentar aqui. A questão de infiltração no rolamento é de segurança para nós — interpreta.
O superintendente de Desenvolvimento e Expansão da Trensurb, Eurico de Castro Faria, relata dificuldade para entender porque os trens não funcionam e sofrem infiltrações de água.
— Antes do serviço ser contratado, eles receberam as condições da nossa linha. Eles sabiam que é uma linha a céu aberto.
Borille ressalta não acreditar que tenha sido intencional.
— Não acredito que seja falha de projeto. O cara pode ter colocado algo para nós que a céu aberto seria inadequado.
Os dois executivos da Trensurb relatam problemas que vão muito além da infiltração de água, como tampas de graxa fora do tamanho previsto. E ressaltam que tudo custa muito caro.
— No contrato, tem condições de reparação de peças. No caso dessas que tem esse problema maior, eles já trocaram mais de uma centena de rolamentos. Cada rolamento custa R$ 7 mil, isso sem a mão de obra para colocar — diz Faria.
Os dirigentes da Trensurb prometem continuar multando o consórcio, na medida em que não cumprem o cronograma de colocar os trens em funcionamento.