Documentos arquivados em instâncias judiciárias indicam que os irmãos Filippeddu — proprietários da casa de jogos Winfil, em Porto Alegre — iniciaram seus negócios na Bolívia em 2009, quando a empresa Lotex S.A. transferiu a concessão de exploração de jogos e loterias no país para a Juegos y Centros de Entretenimiento Bahiti S.A.
A rede Bahiti, que ostentava arquitetura e decoração inspiradas em temas egípcios, era considerada a maior da Bolívia, com cerca de 1,5 mil máquinas caça-níquel distribuídas em salões em Santa Cruz de la Sierra, mais populosa e rica cidade do país, além da capital La Paz e de Cochabamba.
Exceto em recepções a convidados especiais, pelo menos uma delas noticiada na imprensa, os Filippeddu não se apresentavam publicamente como proprietários da rede Bahiti. A tarefa ficava com gerentes e advogados. A tranquilidade dos franceses no país, para onde levaram parte da família, não tardou a sofrer abalos.
No dia 11 de fevereiro de 2010, funcionários do Serviço de Impostos Nacionais fecharam seis estabelecimentos Bahiti. As razões alegadas para a ação foram "não emissão de notas fiscais, faturas e inadimplência de impostos".
Nessa época, o governo boliviano editou novos e rigorosos regramentos para as casas funcionarem no país. Foi aberto prazo de 120 dias para que os empreendimentos em atividade fizessem adequações.
O Bahiti não atendeu as normas e seguiu de portas abertas. No dia 13 de julho de 2011, a Autoridade de Fiscalização e Controle Social do Jogo, com apoio de grande contingente policial, fechou cinco bingos Bahiti durante a madrugada, em ação que ganhou notoriedade na imprensa nacional.
Os detalhes das duas operações estão descritos em três recursos impetrados pelos advogados do Bahiti no Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP). Eles solicitaram à Justiça o direito de reabrir as casas e uma determinação para que autoridades se abstivessem de fiscalizar os bingos – estratégia semelhante à adotada pela Winfil no Brasil. Também pediram a punição de agentes fiscalizadores por suposto abuso de poder e a declaração de ilegalidade da nova lei boliviana de jogos. Todas as sentenças do TCP (0481/2012, 0759/2013-L, 0477/2012-CA) foram contrárias aos interesses do Bahiti.
Na segunda operação policial, documentos foram apreendidos e, em dezembro de 2011, a Justiça determinou a prisão preventiva de José Maria Peñaranda Aramayo, gerente-geral do Bahiti, por suspeita de enriquecimento ilícito com dano ao Estado.
A prisão de Peñaranda era o primeiro capítulo de uma novela que se tornaria escândalo nacional: em seus computadores, o Ministério Público encontrou uma lista com o nome de 16 senadores de oposição. Investigadores passaram a trabalhar com a hipótese de os parlamentares terem sido subornados para favorecer a rede. Um dos inscritos na tabela era o senador Roger Pinto Molina, que, alegando perseguição por parte do governo de Evo Morales, se exilou no Brasil, onde morreu em agosto de 2017. Antes de se refugiar para evitar a prisão, uma das acusações que pesavam contra Pinto Molina era a suposta relação corrupta com o Bahiti.
Sanção de R$ 54,6 milhões
Entre julho de 2010 e dezembro de 2011, as casas de jogos passaram por investigação da Gerencia de Grandes Contribuintes do Serviço de Impostos Nacionais. Foi emitida contra o Bahiti sanção equivalente a R$ 54,6 milhões, tendo a omissão de tributos como principal motivo. Os detalhes do caso estão descritos em uma decisão de maio de 2012 da autoridade tributária de Santa Cruz de la Sierra, onde ocorreu o julgamento de um recurso dos advogados do Bahiti. Mais uma vez, os defensores da rede perderam e as penalidades foram mantidas.
Em um relatório juntado ao processo, fiscais bolivianos informaram ter encontrado contratos internacionais de consultoria e prestação de serviço entre Bahiti e quatro membros da família Filippeddu, incluindo André Noel e François, e o gerente Peñaranda, além de outras pessoas.
Os episódios passaram a manchar a imagem do Bahiti na Bolívia desde o início de 2010, mas a situação piorou em abril de 2013, quando André Noel e François Filippeddu foram acusados de serem os supostos mandantes da morte de um sócio.
Em 4 de abril de 2013, Guillermo Rios Velasco, preso em agosto de 2012 pelo assassinato de Luis Guillermo Roca, afirmou ao Ministério Público que os franceses haviam lhe oferecido US$ 500 para dar um "sumiço" na vítima, acionista do Bahiti.
Os Filippeddu cancelaram, na última hora, depoimentos diante do promotor Alejandro Ortega Velez, então responsável pelo caso. Velez avaliou que a medida era protelatória e que havia risco de fuga. Emitiu mandados de prisão preventiva contra os irmãos. Na Bolívia, em casos de crimes graves, os promotores podem ordenar reclusão, mas os donos do Bahiti não foram localizados na ocasião.
Onze dias depois, Velez alegou que o prazo da investigação havia sido ampliado. Ele entendeu que poderia deixar, por ora, sem efeito os mandados de prisão.
O caso é narrado em dois recursos em que os advogados dos Filippeddu recorreram ao Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) da Bolívia para pedir a garantia da liberdade dos clientes e punições a servidores públicos por abuso de autoridade. Os recursos foram negados nas sentenças plurinacionais 2141/2013 e 0227/2014.
O assassinato foi julgado em 15 de janeiro de 2015 pelo Tribunal Quinto de Sentencia. Os franceses não foram levados a júri. Apenas Velasco, autor das facadas letais, foi julgado e condenado a 25 anos de prisão por homicídio seguido de roubo. A reportagem localizou o promotor Velez para solicitar detalhes do desfecho, mas ele informou ter deixado o Ministério Público da Bolívia para atuar como advogado na iniciativa privada. Disse que não iria se manifestar.
O ano de 2013 marcou a saída dos Filippeddu da Bolívia. Em maio de 2014, já no Brasil, André Noel abriu uma empresa de "investimentos em aplicações financeiras" sediada em São Leopoldo. Em janeiro de 2015, constituiu pessoa jurídica em Portugal, na Zona Franca da Madeira, mas declarou na documentação estar residindo em Florianópolis.
Operações da família Filippeddu na Bolívia "não tiveram seguimento por questões de cunho político", afirma advogado da Winfil. Leia mais