Porto Alegre foi surpreendida, em setembro de 2017, pela notícia de que uma sofisticada casa de jogos de azar, atividade proibida no país, abriria as portas às claras com investimento milionário. Após contratempos legais, a Winfil foi inaugurada oficialmente em 19 de outubro do ano passado com coquetel para centenas de pessoas, na Avenida da Cavalhada. Inicialmente, para não caracterizar a contravenção penal, operou sem apostas em dinheiro, apenas com demonstrações em suas máquinas caça-níquel. Mas, em novembro, as apostas começaram e, mesmo sendo alvo de duas operações da Polícia Civil e do Ministério Público, a casa segue ainda hoje operando com a circulação de dinheiro, à revelia da lei.
A chegada da Winfil ao Rio Grande do Sul é parte da ofensiva que tenta fazer da capital gaúcha o ponto de partida para a liberação do jogo no Brasil, tendo como argumentos a geração de empregos e a arrecadação de tributos. Após mais de quatro meses de apuração internacional, seguindo uma trilha de documentos, o Grupo de Investigação da RBS (GDI) descobriu a verdadeira história por trás da Winfil, descortinando a trajetória de seus proprietários, os irmãos franceses André Noel Filippeddu, 59 anos, e François Filippeddu, 61. Nas últimas três décadas, eles deixaram um rastro de envolvimento em crimes e episódios sombrios na Europa e na América do Sul:
Em 2000, André Noel foi condenado à prisão por tentativa de extorsão e preparação de atos de terrorismo. Bombas foram usadas em um empreendimento que não cedeu à exigência de pagamentos feita por Filippeddu, que representava uma facção extremista francesa. Leia mais
Entre 2009 e 2013, André Noel e François comandaram o Bahiti, então maior rede de casas de jogos da Bolívia. Entraram no noticiário nacional por suspeitas de fraudes fiscais, sonegação e corrupção junto a políticos. Suas prisões preventivas chegaram a ser decretadas após terem sido acusados de serem os mandantes do assassinato de um sócio no Bahiti – crime pelo qual não foram levados a júri. Leia mais
A Divisão de Investigação Antimáfia de Roma apontou que François ajudava a lavar o dinheiro do tráfico de cocaína, vinda da Colômbia para a Europa, com investimentos em máquinas caça-níquel no Brasil. A pedido da Interpol, o STF decretou a prisão preventiva para extradição de Filippeddu, que permaneceu por quase três anos foragido. Leia mais
Todos os fatos que reconstroem a trajetória dos Filippeddu são comprovados por documentos oficiais arquivados em instâncias judiciárias da Europa e da América do Sul, recolhidos pelo GDI em mais de quatro meses de apuração.
Essas são algumas das credenciais dos homens que inauguraram a Winfil, na zona sul de Porto Alegre, primeira casa do ramo a operar abertamente no país, dotada de cerca de 400 máquinas caça-níquel e restaurante. Se outros estabelecimentos do ramo funcionam às escondidas, sobretudo em lugares decrépitos, a Winfil, cujo lançamento demandou investimento de aproximadamente R$ 4 milhões, segue atuando sem segredo, recebendo apostas em dinheiro.
Um dos advogados do empreendimento comparece seguidamente ao STF para apresentar argumentos em favor da liberação da atividade. A Corte se prepara para julgar a constitucionalidade de uma lei de 1941 que tornou o jogo contravenção penal. No Rio Grande do Sul, os representantes da casa chegaram a obter liminar judicial determinando que a Polícia Civil não poderia recolher as máquinas caça-níquel na hipótese de operações.
No Palácio do Planalto e no Congresso, o lobby do setor é intenso pela aprovação, ainda no primeiro semestre de 2018, do projeto de lei do senador Ciro Nogueira (PP-PI) que regulamenta e autoriza o jogo — na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, a proposta foi rejeitada, mas ainda haverá votação em plenário. Os argumentos centrais são a geração de empregos e a arrecadação que o país poderia ganhar em impostos.
Desde a inauguração da Winfil, os Filippeddu jamais se apresentaram como proprietários. Reservados, são homens de bastidores. A tarefa de se mostrar em público e dar entrevistas sobre o empreendimento sempre coube a Rogério Dell’Erba Guarnieri, brasileiro que é associado dos franceses pelo menos desde os tempos de Bolívia.
No contrato social, a casa instalada na Avenida da Cavalhada tem suas cotas de R$ 150 mil igualmente divididas entre André Noel e Guarnieri. François não consta entre os acionistas, mas, no 1º Tabelionato de Notas de São Leopoldo, André Noel registrou procuração pública em que autorizou o irmão a atuar como seu procurador. François obteve amplos poderes para representar o familiar em questões da Winfil, em órgãos públicos e privados. Guarnieri também recebeu a mesma competência. A procuração em nome de François foi protocolada na Junta Comercial, anexada ao contrato social da empresa. O registro também foi juntado ao processo judicial em que a casa conseguiu, no Rio Grande do Sul, liminar para impedir a polícia de confiscar suas máquinas caça-níquel.
Quando anunciaram seus negócios, os porta-vozes da Winfil manifestaram desejo de expansão. Na Junta Comercial do Rio Grande do Sul, a casa já registrou a abertura de 14 filiais. Dez delas no Estado: na Região Metropolitana, nos vales do Sinos e do Taquari, na Serra e no Litoral Norte. Por enquanto, apenas a matriz na zona sul de Porto Alegre está aberta. As ramificações, embora registradas nos órgãos públicos, deverão iniciar operação somente após eventual decisão favorável ao jogo no STF. A cidade de São Paulo, onde fica uma das quatro filiais da rede fora do Rio Grande do Sul, é a base de François.
André Noel tem endereços em São Leopoldo, no centro e no bairro Scharlau. Três outras empresas em nome dele estão registradas no município: uma construtora e incorporadora e duas pessoas jurídicas de aplicações financeiras, todas em endereços residenciais.
Pessoas influentes na cidade dizem que o convívio social dele, casado com uma brasileira do Vale do Sinos, é restrito. Não costuma frequentar locais públicos ou reuniões da alta sociedade – em perfis de parentes nas redes sociais, os irmãos Filippeddu podem ser vistos em festas privadas e viagens exóticas. No condomínio em que residia em São Leopoldo, a informação é de que, desde a abertura da Winfil, André Noel se mudou para a Capital.
Se, no Brasil, ele mantém discrição, o mesmo não se pode dizer do período em que viveu no seu país natal. Na França, além da condenação por extorsão associada ao terrorismo, André Noel ficou nacionalmente conhecido a partir de 1993 pelo envolvimento no ruidoso caso VA-OM, ocasião em que atletas do clube de futebol Valenciennes foram subornados para facilitar um jogo ao Olympique de Marselha, que buscava um recorde de conquistas no Campeonato Francês ao mesmo tempo em que estava na final da Liga dos Campeões, principal torneio europeu. Nesse episódio, ele chegou a adquirir protagonismo, mas acabou apenas como testemunha. Depois de o fato se tornar público, André Noel teria promovido um encontro entre o então técnico do Valenciennes, Boro Primorac, e o ex-dirigente do Olympique Bernard Tapie, empresário e político francês. Primorac afirmou que André Noel, em nome de Tapie, propôs um acordo em que o técnico abafaria o caso com seu depoimento. Embora tenha confirmado o encontro com Primorac, André Noel rejeitou a versão de que teria feito proposta. André Noel foi chamado a depor perante autoridades como testemunha. Cartolas como Tapie e outros homens do futebol foram condenados.
Os anos na Bolívia também foram tumultuados: os Filippeddu e o Bingo Bahiti, rede de casas de jogos da família no país, apareciam frequentemente na imprensa policial. O anonimato foi recuperado no retorno ao Brasil, a partir de 2014.
"A família Filippeddu sofreu diversas e sucessivas perseguições de cunho político na França", afirma advogado que representa a Winfil. Leia mais