A aposentada Elisabete Simonaio, 65 anos, passou a noite pendurada em um sofá que flutuava pelo quarto, segurando pela mão a mãe morta para que a correnteza de lama não levasse o corpo embora. O bombeiro civil Lucas Horn, 37, montou uma jangada com caixas de isopor e subiu para o telhado do edifício onde mora, abraçado ao cão Thor à espera de socorro. O taxista Antônio Correa, 53, invadiu a casa mais alta da rua, levando consigo 34 pessoas na fuga do rio que não parava de subir. Refugiada na igreja, a dona de casa Cleci Ribeiro, 70, dormiu aos pés do Cristo Crucificado, tapada com a toalha de mesa que cobria o altar.
Só um instinto movia os 4.601 moradores de Muçum em meio à enchente que despejou 20 milhões de litros d'água por segundo no município do Vale do Taquari na última segunda-feira (4): sobreviver.
Espremida entre o Rio Taquari e os morros que delimitam o lado oeste da serra gaúcha, Muçum é uma típica cidade de colonização italiana. Tão próspera quanto pequena, tem poucas ruas e muitos sobrados, habitados por gente de sotaque carregado e olhar desconfiado, sobretudo quando começa a chover demais. Foi assim que se precipitou o caos do último final de semana.
Havia 10 dias, um temporal de granizo atingiu o telhado das residências. Assim como a maioria dos vizinhos, Cleci cobriu o teto com lonas e pediu à filha Rosângela que orçasse uma nova cobertura de zinco. No domingo, a chuva persistente desde sábado apertou e surgiram goteiras na cozinha. De amanhã não passa, pensou Rosângela, que há cinco dias não dormia direito planejando usar dinheiro da liberação emergencial do FGTS para arcar com os R$ 5 mil da obra.
Na manhã seguinte, porém, a chuva aumentou. Por volta das 8h, um alerta da Defesa Civil enviado pelo WhatsApp projetava que o Rio Taquari subiria até a cota de 15 metros, quatro abaixo do limite de transbordo. Ao ver a vizinha levantando os móveis, Rosângela comprou sacos de lixo de 150 litros e começou a ensacar as roupas.
Ao mesmo tempo, em Brasília, o prefeito Mateus Trojan era recebido pelo secretário nacional de Defesa Civil, Wolney Barreiros, para tratar dos estragos causados pelo granizo. Durante a audiência, Trojan foi avisado que a previsão de 15 metros já estava defasada e uma enchente maior se avizinhava. O prefeito cancelou as demais agendas do dia e se recolheu ao quarto no Kubitschek Plaza Hotel. Ao lado do coordenador municipal da Defesa Civil, Rodolfo Pavi, começou a organizar a retirada das famílias de suas casas.
A 1.542 quilômetros dali, Muçum vivia uma debandada irrestrita. Nos celulares, a informação era que agora o rio subiria a 21 metros, alcançando o topo das casas de um andar. Em ritmo frenético, as pessoas começam a encher carros e caminhões com tudo que fosse possível carregar. Desmontadores de móveis e fretistas eram chamados às pressas, telefones não paravam de soar, numa apressada corrente de ajuda. Aos poucos e simultaneamente, o Taquari se aproximava dos extremos leste e oeste da zona urbana.
Extenuado após trabalhar a madrugada inteira no Curtume CBR, onde cuida da plataforma química de tratamento dos couros, Lucas Horn dormia o sono dos justos, indiferente à borda lacustre que espreitava o prédio onde mora, na Avenida Nossa Senhora de Fátima. Do outro lado da cidade, Rosângela fritava uma paleta de gado para comer com arroz, feijão e polenta antes de abandonar a casa de madeira onde viveu a vida inteira.
No centro, o empresário Emerson Ulmi já havia deixado o elegante sobrado da Rua Marechal Floriano para ajudar a desmontar a lotérica da família. Virando a esquina, Elisabete Simonaio lembrava que o pai, Agilberto, falecido há 10 anos, sempre dizia que os “filhos têm de morar perto dos pais”. Foi então até a casa ao lado e buscou a mãe, Zilda, de 90 anos, para esperar com ela a chuva passar.
A poucos metros dali, Antônio Correa tentava acalmar a caçula Valentina, seis anos, que ao ver o rio se aproximando pelos fundos da casa começou a gritar que todos iriam morrer. O taxista botou a menina no carro e a entregou a um casal de amigos, perto da Igreja Nossa Senhora da Purificação, um dos pontos mais altos da cidade. Na mesma região e também valendo-se da solidariedade de conhecidos, Emerson se abrigou com os pais e a esposa, Camila Grabim.
Quando retornou para casa, Antônio tentou levantar alguns móveis e recolher pertences, mas logo viu que a água subia rápido demais. Costeira ao Taquari, a Marechal Floriano começou a perder os barrancos que margeiam o rio. Antônio sabia que a inundação era iminente e levou a mulher e a primogênita Vitória, 12 anos, para o carro, antes de sair pela rua procurando algum lugar alto.
Rosângela também viu a água cada vez mais perto. Mandou Cleci pegar documentos e a gata Frida e sair a pé, enquanto era tempo, e correu até a prefeitura pedindo socorro de uma caçamba para levar os móveis. Mais tarde, encarapitada na traseira do caminhão, cruzou pela mãe zanzando desnorteada pelos arredores, os pés n’água e Frida no colo.
No casarão de 206 metros quadrados que herdou do pai, Elisabete e mãe pegaram alguns biscoitos e refugiram-se no segundo piso, onde estariam a salvo de qualquer enchente. Intranquilas, mas esperançosas, deitaram-se.
Em menos de uma hora, por volta das cinco da tarde, o Taquari ganhou novo relevo. Com velocidade surpreendente, o rio assomou às ruas, alcançando a cintura das pessoas. Já em desespero, Antônio viu uma correria e pediu ajuda. Um vizinho pegou Vitória nas costas e ele e a mulher correram para o único ponto seco: a garagem da casa de Emerson e Camila, onde já havia um grupo de pessoas. Na esquina, a anciã da rua, Dona Ana, de 91 anos, se agarrou ao sofá e teve que ser arrastada pelo sobrinho porque resistia a abandonar o lar.
Transformado em altar da salvação para 34 pessoas, 18 delas mulheres e crianças, a rampa da garagem de Emerson também começou a inundar. Não restava alternativa. Aos pontapés, os homens pedalaram a porta e buscaram abrigo no segundo andar da residência.
Assentado sobre um vale e alimentado pela água que descia vertiginosamente das nascentes espalhadas pelo norte e pela serra do Rio Grande do Sul, o Taquari estourou sua cota em 10 metros. Na ponta leste de Muçum, a correnteza não venceu a curva sinuosa à esquerda que ladeia a Avenida Nossa Senhora de Fátima e o rio formou um novo curso, invadindo a cidade. A vegetação costeira foi arrancada do solo, prédios inteiros foram ao chão. Silos graneleiros ficaram retorcidos como se feitos de arame.
Dos 14 pilares de concreto erguidos para sustentar a cobertura da Praça Cristóvão Colombo, metade pendeu para o lado, comprometendo a construção. Carros, casas, árvores e contêineres foram arrastados. No alto dos postes que restaram em pé, a fiação elétrica se tornou varal da imundície, amparando os detritos espalhados pela corrente d'água.
Eram seis da tarde quando Lucas Horn acordou e viu um oceano de lama cruzando em frente à sacada do apartamento, no terceiro andar. A rede de energia elétrica havia colapsado e, de repente, uma casa se desprendeu do outro lado da rua e veio em direção a ele, ruidosa como um trator lavrando pedras. Ao chegar no meio da via, a correnteza fez o prédio dar uma rabeada, jogando-o contra um poste. Houve estouro e faisqueira, num sinal de que Lucas precisava fazer alguma coisa. Ele pedia socorro aos colegas dos bombeiros voluntários quando, às 21h34min, o sinal de celular e de internet desapareceu.
Abrigada no salão paroquial, no centro, Cleci e Rosângela perceberam que ali também a água começava a chegar. Levantaram os poucos móveis que haviam salvado, juntaram algumas peças de roupas, documentos e saíram em meio à escuridão. Àquela altura, só havia um destino possível: a Igreja Nossa Senhora da Purificação.
Erguido em 1913, o templo já estava tomado por sobreviventes em busca de refúgio. Cleci, Rosângela, o irmão Rogério e o marido Pedro se acomodaram num canto, sob uma estátua de dois metros do Cristo Crucificado. Puxaram o tapete que amparava a imagem para usar como colchão e, com culpa cristã, usaram os panos do altar como coberta.
— Senhor, me perdoa — pediu Rosângela.
Longe dali, em meio ao lamaçal que cobria o centro, Elisabete estava deitada sobre a cama quando ouviu um apelo da mãe no quarto ao lado. Ao botar os pés no chão, mergulhou os tornozelos na água. Assustada, Zilda pedia que a filha a pegasse pela mão. Agarradas, rezaram no escuro com a mesma ênfase com que o segundo piso era invadido pelo rio.
Elisabete já não sabia onde se segurar quando um sofá surgiu flutuando. Ela colocou a mãe sobre o móvel e se apoiou no braço do sofá, torcendo para que o guarda-roupa de seis portas no canto da peça não tombasse sobre elas. Por um instante, a mãe resvalou, o corpo inteiro mergulhando na água fria. Elisabete ergueu Zilda de volta.
— Mãe, tu me escuta? Mãe, tu tá bem? — perguntava em desespero.
Zilda Simonaio nunca mais respondeu. Por toda a noite e madrugada, Elisabete ficou agarrada ao sofá, com água pelo peito e sem conseguir encostar os pés no chão, sem soltar momento algum a mão da mãe morta ao seu lado.
Por toda a cidade, ecoavam gritos de desespero, com as pessoas implorando socorro. Os latidos cessaram, pois boa parte dos cães sucumbiu arrastada pela correnteza. Único local com luz, o Hospital Nossa Senhora Aparecida se tornou uma ilha de segurança em meio ao caos, abrigando 50 idosos das duas casas geriátricas da cidade. Dois enfermeiros, dois médicos e cinco técnicos em enfermagem passaram a noite recebendo sobreviventes, mas não havia cortes ou fraturas a medicar — o diagnóstico era de pânico generalizado.
Isolado na sala do apartamento, Lucas planejou uma fuga pelo alto. Amarrou duas caixas de isopor com cordas elásticas, fez um amparo com ripas de madeira e prendeu a jangada improvisada ao cinto. Colocou o lhasa apso Thor em uma mochila atravessada ao tórax e subiu no parapeito da janela da área de serviço. A 10 metros de altura do chão e a dois do teto, escalou a parede e subiu ao topo do prédio. Ficou ali, sob vento e chuva, abraçado ao amigo canino, até as 3h30min da madrugada. Ao ver a água começando a baixar, retornou ao apartamento. Tudo estava destruído, mas ambos estavam vivos.
Quando amanheceu, a destruição se revelou por inteira. Muçum, que vivia um boom de turismo a partir de passeios de trem pelo vale, estava revirada do avesso. Houve relatos de saques, e Emerson Ulmi foi avisado de que sua casa havia sido invadida e os móveis estavam sendo levados. Armado com duas facas e um cabo de vassoura, ele correu até o sobrado.
—Tem alguém aí? Tem alguém aí? Sai que essa casa tem dono— alertou ao chegar na porta.
Emerson demorou alguns segundos para processar o que via: a geladeira havia sido carregada para o segundo piso, onde agora também estava a lava-roupas recém comprada. Só ao enxergar Dona Ana, a anciã de 91 anos da Marechal Floriano, ele entendeu que os invasores eram os vizinhos e o suposto saque era proteção. Emerson sentou-se na escada e desabou em lágrimas.
Duzentos metros adiante, o choro era de natureza trágica. Sozinha e desolada, Elisabete sentou diante da casa destruída, sem saber a quem recorrer. O corpo da mãe continuava no quarto, sobre o sofá. Zilda só foi resgatada depois das 15h, quase ao mesmo instante em que o governador Eduardo Leite chegava em Lajeado para vistoriar os estragos da enchente.
Ao descer do helicóptero, Leite foi avisado pelo chefe da Casa Militar, coronel Luciano Boeira, de que 15 corpos haviam sido encontrados em Muçum, transformando o 4 de setembro de 2023 na mais letal tragédia climática dos últimos 40 anos no Rio Grande do Sul.