Cinco anos após o início da Operação Acolhida, a migração venezuelana está consolidada como o maior fluxo humano em direção ao Brasil. Foram mais de 144 mil pessoas do país caribenho registradas em 2022. O volume ficou muito acima do número de bolivianos, que ficaram em segundo lugar no ranking, com pouco mais de 15 mil migrantes. Os venezuelanos também lideram com folga a lista das solicitações de refúgio: foram 33,7 mil no ano passado.
Nos Estados que estão entre os principais destinos dos interiorizados pela Operação Acolhida, incluindo o Rio Grande do Sul, não é incomum escutar o idioma espanhol. Venezuelanos estão trabalhando em frigoríficos, restaurantes, mercados e transportando passageiros por aplicativo, entre outras atividades. Seus relatos contam histórias de pessoas que vieram ao Brasil, em uma travessia de fronteira descrita como perigosa, para escapar da fome e da desassistência social.
+ Mulheres jovens, sozinhas e com filhos marcam processo de migração no Brasil
+ Ocupação Farroupilha: a miséria venezuelana na zona norte de Porto Alegre
Entre janeiro de 2017 e junho de 2023, quase 1 milhão de venezuelanos entraram no Brasil, a maioria pela cidade fronteiriça de Pacaraima, em Roraima. No mesmo período, mais de 450 mil deixaram o território brasileiro, seja para retornar à Venezuela ou tentar a sorte em outros países.
A migração desacelerou em 2020 e 2021, forçada pela pandemia de coronavírus e por fechamentos temporários da fronteira, mas os números de 2022 indicam que o fluxo voltou a crescer. Em 2020, 40.206 venezuelanos migraram ao Brasil. O indicador mais do que triplicou, para 144.576, em 2022. Dados da Polícia Federal (PF) mostram que o volume segue crescente: de janeiro a julho, todos os meses de 2023 superaram os do ano anterior em ingressos de migrantes do país caribenho.
"Você pensa que está comendo bem e que quem ficou na Venezuela não está"
Joana Villarroel, 43 anos, é uma afirmação do fluxo venezuelano. Há cinco anos no Brasil, ela tem conquistas a celebrar: trabalha no Polo Petroquímico fazendo sinalizações de risco, trouxe o filho, o irmão, a cunhada e um sobrinho para o Rio Grande do Sul e, mais recentemente, recebeu a chave do apartamento comprado em Esteio, na Região Metropolitana. O imóvel, no bairro Olímpica, tem dois quartos e foi adquirido pelo programa Minha Casa Minha Vida.
— Estou no melhor momento da minha vida — resume Joana.
A fome e a desassistência em saúde foram as causas da migração dela, que era soldadora de eletrofusão na PDVSA Gás, a estatal petrolífera da Venezuela. Joana atravessou a fronteira sozinha e passou oito meses em situação de rua em Pacaraima. Em outubro de 2018, estava abrigando-se em áreas isoladas, receosa de sofrer violência depois do episódio em que brasileiros colocaram fogo em barracas e pertences de venezuelanos em Pacaraima.
— Soube que estavam chamando venezuelanos para fazer a interiorização. Peguei minha mochila e fui até a Operação Acolhida. Cheguei em um abrigo em Esteio que tinha comida, documentação, encaminhamento para emprego, médicos e psicólogos. Tinha uma estrutura nos esperando — recorda Joana, mencionando o município gaúcho que já recebeu distinção da Organização Internacional para as Migrações (OIM-ONU) pelo trabalho de assistência.
Os três familiares de Joana em idade adulta que vieram ao Brasil estão empregados. O irmão e a cunhada igualmente conseguiram comprar a casa própria. Joana sequer cogita regressar à Venezuela, embora a terra natal se mantenha em seus pensamentos.
— O venezuelano aqui (no Brasil) chora muito e tem crises de nervos quando come. Você pensa que está comendo bem e que quem ficou na Venezuela não está — lamenta.
"Ela não poderia fazer o tratamento de saúde na Venezuela. Custa muito caro"
A imigração também mudou a vida de Gusneyis Ramirez, 33 anos, e da filha dela, Gihanna, quatro. Atualmente, elas moram no bairro Guajuviras, em Canoas. A menina tem microcefalia, e o pai, ao tomar conhecimento da situação na Venezuela, desapareceu. Abandonada em um país em dura crise econômica, Gusneyis pegou a filha no colo e tomou a decisão de atravessar a fronteira.
— Pensei na minha família. Ela não poderia fazer o tratamento de saúde na Venezuela. Custa muito caro. O principal motivo da minha vinda foi a saúde da Gihanna — diz.
A menina não caminha nem senta e precisa do auxílio da mãe para comer. A condição exige que Gusneyis tenha dedicação integral aos cuidados, o que praticamente inviabiliza a possibilidade de trabalhar fora.
A situação dramática é atenuada pelas políticas públicas. Ao chegar em Canoas, foi ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e conseguiu ingressar no Cadastro Único, sistema federal de mapeamento de famílias de baixa renda para inclusão nos programas sociais. Gusneyis recebe R$ 750 do Bolsa Família e mais um salário mínimo de auxílio incapacidade para Gihanna. É o suficiente para a alimentação e pagar o aluguel de R$ 600 por um apartamento térreo no Guajuviras. O local é acanhado, mas tem banheiro, geladeira, fogão, TV e aquecedor. A menina faz fisioterapia e está em fase de adaptação na escola, onde fica uma hora por dia.
— Quando minha filha conseguir sentar, ter mais independência e puder ficar mais tempo na escola, quero trabalhar para aumentar a renda — afirma Gusneyis.
Sozinha no Brasil com a filha, um gato e um cachorro, a imigrante relata sentir, por vezes, tristeza e solidão. Mas passa, assegura.
Pesquisa
As histórias de Joana e Gusneyis, que vieram ao Brasil para escapar da fome e em busca de serviços de saúde, reforçam as descobertas de uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz). No estudo, divulgado em março de 2023, foram entrevistadas 2.012 imigrantes venezuelanas que chegaram ao Brasil entre 2018 e 2021. A fome foi a motivação da migração para 54% delas. A busca por serviços de saúde foi a segunda principal causa, com 38%, incluindo grávidas que vieram fazer o parto no Brasil.