Quando questionada se já havia ouvido falar em Porto Alegre, Rio Grande do Sul ou algo parecido antes do início de toda a empreitada, a venezuelana Vanessa Romero, 24 anos, ri, um tanto debochada.
—De Porto Alegre? Eu nunca tinha ouvido falar nem de Pacaraima.
Pacaraima é a cidade brasileira com a qual o Brasil faz fronteira com a Venezuela, no Estado de Roraima. É por lá que a maior parte dos mais de 260 mil venezuelanos ingressaram no Brasil desde o aprofundamento da crise socioeconômica e política do país caribenho - 100 mil deles rumariam a outros países posteriormente ou retornariam à Venezuela.
Conforme dados da Operação Acolhida, do Exército, o Rio Grande do Sul é o terceiro Estado que mais recebeu venezuelanos via "interiorização". Ou seja, para começar uma nova vida como imigrantes residentes. Os custos da primeira viagem são bancados por entidades como o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur/ONU). Até junho, 1.095 venezuelanos chegaram ao Rio Grande do Sul.
Em 25 de setembro do ano passado, 140 deles desembarcaram em terras gaúchas e foram encaminhados basicamente a quatro destinos: Porto Alegre, Cachoeirinha, Canoas e Esteio. Passado um ano da experiência, eles contam histórias muito parecidas: seja nos motivos pelos quais deixaram a Venezuela, na experiência traumática em Roraima, ou nos pontos positivos e negativos do Rio Grande do Sul.
A situação de Diamante Folt, 29 anos, é emblemática da fase que os venezuelanos vivem hoje. Foi uma das 224 pessoas acolhidas pela prefeitura de Esteio, primeiramente em uma pousada. Hoje, empregada como merendeira em uma escola, alugou a casa onde já moraram até 14 pessoas juntas (hoje, são 10). De familiares, são o marido, dois filhos, a irmã e o sobrinho. Espaçosa, a residência de Diamante e Jhonnier involuntariamente virou uma espécie de casa de passagem para quem está começando no país, como os irmãos Omar Henrique e Javier Romero. Omar, por exemplo, pediu ajuda depois de passar cinco meses sem pagamento trabalhando em uma fazenda. Em Esteio, já conseguiu emprego.
— São pessoas boas, mas mesmo assim é cansativo. Imagina a quantidade de banhos, de comida. A partir de agora, estamos pensando em dar um tempo nisso. Descansar um pouco—conta Diamante.
Ela pede, orgulhosa, que o repórter busque no seu celular imagens da sua terra: Isla de Margarita, no Caribe. Aparece um cenário paradisíaco, com mar cristalino, praias e palmeiras. Parece um oposto completo ao cenário de hoje: uma casa na Vila Osório a poucos metros da BR-116. A situação econômica, todavia, inverte o impacto visual dos cenários. Na Venezuela, a família fez as contas e concluiu que não teria como alimentar a terceira filha. Deixou a bebê de 23 dias com o marido e cruzou a fronteira com um objetivo claro: vender o cabelo natural até a cintura e enviar o dinheiro para casa. Os R$ 300 arrecadados equivalem, hoje, a 30 salários mínimos na Venezuela (R$ 10). Viveu como pôde por um ano em Boa Vista até receber a proposta de se estabelecer no desconhecido Rio Grande do Sul.
— Ouvi dizer que tínhamos de usar mais roupas aqui, mas que as oportunidades de trabalho eram melhores. Foi o suficiente —conta Diamante, que nunca havia passado por uma temperatura inferior a 20ºC.
Desde então, já conseguiram viabilizar a chegado do marido e dos dois filhos, a bebê Mackenzie e Juan, de quatro anos. A filha mais velha ficou para trás com os avós. Drama semelhante, vive Vanessa, que chegou em Porto Alegre acolhida primeiramente pela ONG Aldeias Infantis SOS, no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre, por onde já passaram 186 venezuelanos (neste sábado (28), a entidade organizou uma confraternização com imigrantes e voluntários para celebrar a data).
Como Diamante, Vanessa e o marido cruzaram a fronteira assolados pela fome com uma criança de colo, outra prestes a nascer e deixando a mais velha, de sete anos, aos cuidados da avó. Ela, que já fora caixa de banco e cabeleireira, nos últimos tempos vendia café na rua. Porém, 20 pessoas faziam o mesmo em cada rua. E quem desejava comprar não tinha dinheiro. A filha mais velha ficou para trás porque não havia dinheiro para mais uma passagem até a fronteira.
— Na última vez que conversei com a (filha) Cristina, ela disse: "Mamãe, não quero mais falar com você. Passou julho e você não me buscou". Aquilo me rompeu o coração e decidimos dar um basta. Se Deus quiser, em 10 de outubro ela e a minha mãe cruzam a fronteira — conta.
Todavia, este é só o início de uma saga que Vanessa conheceu bem, nos oito meses que passou em Boa Vista até dar à luz a menina Rany e, recuperada, vir ao Rio Grande do Sul. Os abrigos em Bela Vista, pelo que soube, estão conseguindo alimentar, mas não dar abrigo noturno aos venezuelanos. Pela fronteira, conforme o Exército, o fluxo diário de ingresso é de 550 pessoas por dia. Teme que a mãe e a filha tenham de dormir ao relento até a interiorização via ONU se concretizar, pois a família não pode bancar as passagens de avião de Bela Vista a Porto Alegre — cerca de R$ 1,5 mil por pessoa. Quando os pensamentos deixam a Venezuela, Vanessa e o marido festejam o final do inverno e a adaptação a Porto Alegre, que consideram uma cidade "muy hermosa", com paisagens parecidas ao que imaginam ser a Espanha. Após imigrarem sem saber sequer que no Brasil se falava português, já falam bem a língua e comemoram o fato de ela e o marido estarem empregados — ela em uma empresa de limpeza, a Liderança, e ele, na GM, como pintor automotivo — e elogiam a solidariedade recebida dos brasileiros.
— Você não imagina como é comovente ver um brasileiro se esforçar para comprar um tipo de farinha de milho correto para nós fazermos "arepas". O venezuelano te ajuda quando tem pena. Já o brasileiro te ajuda porque gosta de ajudar. Porque se sente bem ajudando. Essa é a diferença. Tirando essa mania de colocar espaguete na sopa, só tenho elogios aos brasileiros — brinca.
O bom acolhimento, todavia, não é o suficiente para eliminar o desejo de retornar à Venezuela assim que a situação do país melhorar. Os venezuelanos citam o calor, a família, a culinária, mas também um algo mais que eles têm dificuldade em definir. Quando tenta, Vanessa chega a uma representação curiosa do que é se sentir em casa. Compara o jeito afetuoso, mas tímido, dos gaúchos, com os modos venezuelanos.
— Saio na rua e ouço: "Olá, bom dia." Sinto falta de ouvir: "Épale pana!!! Qué más?? Cómo está todo???" — compara, sorrindo e chacoalhando os braços.