Um sábado por mês, os filhos se reúnem para rever a técnica de enfermagem Neusa Batezini Scherer, 64 anos, na zona norte de Porto Alegre. Os bebês ganham o colo dela. Os mais crescidinhos recebem abraços demorados. A família é tão grande que se forma uma fila – capaz de se estender ao longo de cinco horas –, mesmo que ela disponha de poucos segundos de conversa com cada um. A curiosa rotina existe desde 2015, quando Neusa criou uma ação social para atender a haitianos e senegaleses que estão de passagem ou moram na capital gaúcha. Nas reuniões mensais, há distribuição de cestas básicas aos mais necessitados.
Por conta da dedicação, Neusa passou a ser chamada de “mãe” pelos homens e mulheres ainda em processo de adaptação ao novo país. E já são mais de 450 “rebentos” – soma crescente a cada dia.
Se não consegue revê-los no final de semana destinado ao encontro, ela os contata pelas redes sociais e até os visita nas suas casas. A aproximação com esses “filhos” ocorreu ao acaso. Espírita, Neusa era conhecida entre os amigos pela vocação ao voluntariado. Na época, recém transferida para uma unidade de saúde da região, foi convidada por uma colega de trabalho para visitar os primeiros imigrantes abrigados no Vida Centro Humanístico. Num final de semana, mesmo sem jamais ter ido ao local antes, ela comprou cestas básicas e foi ao encontro deles. As cenas que se sucederam a emocionaram tanto que não pôde mais parar de estreitar o contato com eles.
Uma festa ocorria na área, mas os refugiados haitianos eram mantidos num salão dos fundos e os senegaleses ficavam isolados no segundo andar do prédio. Neusa optou por subir as escadas. Na primeira sala, transformada provisoriamente em cozinha, havia apenas ovos sobre a mesa. Ela bateu palmas, chamou por eles, mas não teve retorno. Até ser surpreendida pelo cenário de abandono.
– Estavam todos no escuro, deitados em colchões e fragilizados. Quando gritei “eu tenho comida”, foi como se houvesse mágica. Um deles, o Ebrima, se levantou. Era muito magro e fraco. Nunca esquecerei o sorriso dele, a simpatia, apesar da miséria. Três deles foram comigo até o carro e agradeceram as doações. Fui embora chorando. Desde aquele dia, prometi que não os abandonaria – recorda.
Na manhã seguinte, Neusa compartilhou a história entre amigos, que se comoveram com o problema. Para se aproximarem dos imigrantes recolhidos no Vida, os voluntários fizeram um almoço de confraternização. Como agradecimento, ela foi homenageada com um hino cantado por um haitiano. Os laços só se reforçaram.
Comprometida em ajudá-los, passou a arrecadar roupas e alimentos e distribuí-los aos cerca de 45 abrigados no espaço cedido pela prefeitura. Inicialmente, teve o apoio de mais de uma dezena de voluntários. Depois de três ações em sequência, o time começou a minguar. Neusa ainda enfrentou a resistência de conhecidos, contrários à vinda dos novos imigrantes para o Brasil.
– Tive muitas barreiras, muito preconceito, de todos os lados. De pessoas que eu não imaginava que fossem ser contra. Resisti, com o apoio da minha família – conta.
Certo dia, Neusa foi chamada de mãe por uma imigrante. Pensou ser um engano. Inesperadamente, outros começaram a identificá-la da mesma forma. Inclusive os adultos mais velhos. A dúvida permaneceu por algumas semanas, até observar uma haitiana chamando a própria filha de “mãe”.
Na mesma hora, apesar da dificuldade para se comunicar em créole, a língua falada no Haiti, Neusa perguntou por que ela chamava a menina daquela forma.
– Eu a amo. Por isso, a chamo de mãe – ouviu como resposta.
– Mãe significava muito mais do que eu imaginava. Não é só proteção: é amor. Eles têm um amor muito grande por mim. E eu, por eles – resume Neusa.
Romaria de filhos
Cada vez mais próxima dos imigrantes, ela apadrinhou três crianças, que foram batizadas por Neusa e o marido, Paulo Rômulo Scherer, 74 anos. O casal já foi convidado a apadrinhar outras quatro.
Há dois anos, a união da família Scherer com os imigrados foi reforçada quando a técnica de enfermagem sofreu um grave acidente de carro, ao colidir frontalmente contra um poste na Avenida Sertório. No decorrer da internação no Hospital Cristo Redentor, voluntários precisaram ser mobilizados para atender a multidão de senegaleses e haitianos em frente à instituição. Em prece, todos queriam visitar a “mãe” para ter notícias. A mesma cena ocorreu no retorno para casa, no bairro Sarandi. Acamada, por conta de uma fratura no esterno, osso da parte anterior do tórax, Neusa recebia cinco visitantes por vez – numa espécie de romaria, que se iniciava nas primeiras horas da manhã e se seguia até a noite. Um deles ficava responsável por conduzi-los até o quarto e traduzir as palavras de carinho dos que ainda não falavam português.
– Chegavam dizendo as únicas palavras que sabiam que eu entenderia: “Mãe, como tu está?”. Nunca tinha visto nada igual – diz.
Recuperada, Neusa precisou de um espaço maior para servir de ponto de referência da ação realizada com os imigrantes. O número de atendidos aumentou mais de 10 vezes, e a sala localizada no próprio Vida ajudou o grupo a organizar as arrecadações e doações de roupas, alimentos, calçados e utensílios domésticos. Muitos imigrados chegam ao Brasil com apenas as roupas do corpo. Para terem uma identificação, os voluntários que se juntaram a Neusa batizaram o projeto de Voluntários Família Imigrante.
Apesar de trabalhar de segunda a sexta-feira, das 8h as 17h, em uma unidade de saúde, ela visita o Vida quase diariamente. Sempre há alguém pedindo auxílio. O celular não para um minuto. Inclusive nas madrugadas e nos poucos dias de férias no ano. As mensagens são diversas, da solicitação de ajuda ao vídeo de um bebê que está começando a falar. Até os imigrantes que deixaram o Brasil mantêm contato com a mãe do coração. Ela recebe mensagens e ligações a todo instante, do simples “bom dia” à manifestação de saudade.
A camareira Guerline Exume, 34 anos, oito deles no Brasil, moradora do bairro Passo das Pedras, também na Zona Norte, liga todos os dias para Neusa. Natural do Haiti, Guerline chegou à Capital acompanhada do marido, o auxiliar de manutenção Willex Exume, da mesma idade. O casal tem três filhos brasileiros, Wildialine, sete anos, e os gêmeos Wisline e Woosley, dois anos. Embora tivesse dificuldades para se expressar em português, Guerline viu em Neusa a segurança que lhe faltava longe do país de origem. Nas gestações, contou com a ajuda da técnica de enfermagem e da família dela. Embora os Exume estejam empregados, ainda dependem de doações de roupas, principalmente, para se manterem unidos.
– Eu respeito ela (indicando Neusa) porque minha mãe de verdade não está aqui. Minha mãe agora é ela (Neusa) – comenta Guerline, que ainda participa do encontro mensal para receber uma cesta básica.
No final de abril, a reportagem de ZH acompanhou a distribuição das cestas. Um dia antes, Neusa e algumas voluntárias tinham ficado mais de 10 horas separando os alimentos. Na data prevista, ela chegou ao Vida antes das 9h – a distribuição propriamente dita começaria às 15h. Era preciso preparar o local, organizar as fichas, os sacos de comida e o brechó montado a partir das doações. Na sequência, outras voluntárias apareceram para agilizar o trabalho.Por volta das 14h, uma fila com cerca de 10 imigrantes já se formava próximo à porta da sala de atendimento. As senhas começaram a ser distribuídas.
A comunicação é básica – muitas vezes, é necessário a ajuda de um tradutor. Neusa lamenta não ter conseguido ainda aprender a falar créole, mesmo compreendendo algumas palavras.
– Vocês precisam frequentar as aulas de português, aos sábados. Temos uma professora voluntária para isso. Sabendo português, as chances de um emprego aumentam. Sinto muito, mas quem não vier na aula não poderá mais ganhar a cesta – explicou, em tom maternal, para um grupo com ouvidos atentos ao tradutor.
Depois do alerta, Neusa voltou à sala onde eram preparados os kits. Com uma lista em mãos, indicava a quantidade de comida a ser distribuída por família – só ela sabe a situação de cada inscrito. A técnica sentou-se em frente à mesa, posicionada estrategicamente próxima à porta de entrada. Uma das primeiras a pedir um abraço foi Rosedana Belfrid, de seis anos. Neusa não resistiu e a pôs sobre seu colo por alguns minutos.
– E a bonequinha que tu ganhou? – perguntou.
– Dei o nome de Laura, mãe – comentou a menina.
– Ai, que amor. Me dá um beijo aqui – disse Neusa, antes de se despedir.
Uma mãe se aproximou com três crianças, entre três e sete anos. Mais uma vez, a fila parou: Neusa quis abraçar os pequenos.
– Vocês gostaram da Páscoa? – questionou à menina maior entre os irmãos (as crianças haviam participado da festa organizada por Neusa).
– Sim, mãe – respondeu, baixinho, a garota.
Mais tarde, foi a vez de Jonathan Louissaint Blanc, de 10 meses, receber os beijos da “avó do coração”, como a voluntária se autointitula para os bebês. Lentamente, a fila foi diminuindo. Dezenas chegavam com dúvidas sobre vagas para emprego, procedimentos para regularizar documentos ou pedidos de roupas e calçados para os filhos. Neusa tinha resposta para todas as dúvidas. Perto das 19h, a última das 110 cestas foi entregue. Parte dos voluntários já havia deixado o local. Neusa ainda ficou por mais duas horas para organizar a sala. O marido a esperava do lado de fora do prédio. Seria o fim de mais um dia de ação – não fossem as mensagens ainda pendentes de resposta naquela noite.
Mãe (biológica) de Marina, 33 anos, Shana, 39, Diego, 40, e Paolo, 43, e avó de quatro netos, Neusa não esperava ampliar ainda mais o núcleo familiar. Hoje, confessa não saber mais viver sem as centenas de filhos. A felicidade se confirma nos olhos marejados a cada novo “eu te amo, mãe”, deixado no final das mensagens arquivadas no celular. O aparelho, aliás, ganhou mais memória para não correr o risco de perdê-las.