Lúcia trouxe a ideia de confeccionar artesanalmente uma bolsa. Márcia falou sobre a produção de almofadas em formato de coração. Na sequência, surgiram Juliana, propondo um planner (organizador de tarefas em formato semelhante ao de uma agenda), e Elisa, oferecendo seu próprio ateliê para trabalhos voluntários. Diante de tanta disponibilidade, a arquiteta Flavia Maoli, 31 anos, diretora-presidente do Projeto Camaleão, ONG de Porto Alegre, resolveu reunir todas as sugestões em uma única proposta. A designer Nick Silva, então, juntou-se ao grupo e criou uma identidade para essa união. Nascia o Kit com Carinho, mimo entregue gratuitamente desde o mês passado a mulheres que estão enfrentando o câncer de mama.
Produzidos desde janeiro por um grupo de voluntárias, 35 kits (compostos por bolsa em jeans para carregar o dreno, uma almofada em formato de coração, um planner, uma fita para amarrar no braço do lado mastectomizado, um “turbalenço” (que serve como lenço, turbante, faixa de cabelo e tipoia), uma revista e um batom, tudo reunido numa ecobag) já chegaram às mãos das pacientes. Segundo Flavia, que enfrentou duas vezes um Linfoma de Hodgkin, o objetivo é humanizar ainda mais o primeiro atendimento realizado após a mastectomia.
O retorno das beneficiadas tem sido positivo, garante a idealizadora. O dreno, por exemplo, que costumava ser carregado numa sacola, agora tem bolsa especial, confeccionada com jeans reciclado, que pode ser usada em qualquer ocasião. A fita, cuja mensagem “Toque com Carinho” é escrita à mão pela coordenadora do grupo, Márcia Freire Accorsi, 60 anos, voluntária no Projeto Camaleão há um ano e meio, tem função importante de alerta aos que desejarem abraçar as pacientes depois da cirurgia. Ela deve ser amarrada no lado mastectomizado, que costuma ficar dolorido nas semanas seguintes à intervenção.
Entre os produtos distribuídos, o coração de almofada usado como apoio na axila operada é o xodó de quem o recebeu. Os primeiros foram costurados manualmente pelas mulheres que se dispuseram a ajudar na montagem do kit.
Em abril, a incansável Flavia conheceu a Associação Tempo Presente, de Nova Petrópolis. O grupo de voluntárias se ofereceu para produzir 400 almofadas com tecidos adquiridos a partir da doação de uma entidade local. As primeiras 50 foram repassadas à Camaleão na segunda quinzena de abril. Outra leva deve chegar em maio. Segundo a diretora-presidente da ONG, o projeto do kit é o que tem mais pessoas envolvidas diretamente.
– O Kit com Carinho reforça a principal ideia do Projeto Camaleão, que é “cada um faz um pouquinho, cada um traz o que sabe e gosta de fazer, e a gente consegue fazer algo maior” – diz Flavia.
Entre as voluntárias, a designer Juliana Martins, 46 anos, afirma ter encontrado um novo rumo ao integrar o grupo. Em 2016, ela descobriu o câncer e passou pela mastectomia. Juliana explica que a própria experiência lhe deu a ideia de produzir uma agenda de 20 páginas.
No pequeno caderno de folhas recicladas e costurado à mão, a pessoa anotará as consultas, os compromissos gerais, o horário dos medicamentos e a quantidade de líquido que sai pelo dreno diariamente – importante informação que precisa ser repassada ao médico na consulta.
– Como passei pelo mesmo processo, dá um orgulho muito grande poder transmitir meu carinho a essas pacientes – emociona-se Juliana.
Todo o material utilizado na primeira etapa veio de doações. As integrantes do Projeto Camaleão estão buscando parceiros para apoiarem a ideia. Até agora, porém, não há patrocinadores. Foi aberto um financiamento coletivo mensal para arrecadar o valor necessário para a montagem de 35 kits por mês – cada um tem custo estimado em R$ 55. Flavia ressalta que as pessoas poderão doar o valor que desejarem ou até apadrinharem um único kit. A ONG se compromete a encaminhar um relatório do que foi realizado com o dinheiro.
O financiamento também ajudará na manutenção do próprio Camaleão, que completará cinco anos daqui a dois meses graças ao voluntariado. A casa alugada pela ONG desde 2018, no bairro Rio Branco, oferece mensalmente diversas oficinas e atendimento psicológico a cerca de 500 pacientes – independentemente de serem do sistema de saúde público ou privado.
Fã confessa do processo colaborativo e contrária a ações individuais, Flavia iniciou o projeto quando descobriu a volta do linfoma, em 2013, depois da primeira luta travada dois anos antes. A arquiteta lembra que, na época, achava que as pessoas com câncer eram infelizes, e ela não queria ser infeliz. Foi quando decidiu expor o próprio exemplo nas redes sociais para encontrar outros que se identificassem com o problema. Depois, com a ajuda de dois amigos que hoje também são diretores da ONG, criou uma “feira de autoestima”, com duração de quatro horas. Com os retornos positivos das participantes, percebeu que poderia ir além.
Hoje, a arquiteta considera o Projeto Camaleão “o filho inesperado, sem planejamento, mas que lhe dá muita felicidade”. A experiência com o câncer a fez abandonar a tristeza e dar preferência por levar amor a outras pessoas, como a criação do Kit com Carinho.
– Mesmo que eu não saiba quanto tempo eu terei pela frente, porque ninguém sabe, com ou sem câncer, hoje em dia tenho uma realização pessoal muito grande com esse projeto, porque ele é coletivo. Isso é maravilhoso – sintetiza.
Desprendimento e amor ao próximo
No ano passado, a enfermeira Lucia Vieira, de 54 anos, moradora de Bagé, passou por duas cirurgias em menos de um mês e ficou com um dreno durante 30 dias. A experiência de transportar o dispositivo a fez criar o projeto Segura. Ela idealizou uma bolsa especial para guardar o equipamento durante todo o tratamento.
– Receber o diagnóstico de câncer de mama te deixa no mínimo insegura. Minha intenção era ajudar as outras pacientes a, mais do que segurarem o dreno, amenizarem a ansiedade, a tristeza, o medo.
Lucia procurou a ONG Camaleão e ofertou algumas bolsas produzidas. Flavia, então, convidou-a para incluir a bolsa no kit que começava a ser criado.
– Quando conheci a Flavia, fiquei muito encantada com a criatividade e a proatividade dela. É um projeto muito legal, envolve desprendimento e amor ao próximo.
Para ajudar
- Para a montagem do Kit com Carinho, as voluntárias aceitam doações de calças jeans masculinas tamanho grande, tecido sarja crua, fita cadarço de algodão com 3cm de largura, regulador de metal 3cm, meia argola de metal 3m, tecido liganete colorido ou com estampas (mínimo 1m).
- Para doar diretamente ao projeto, via financiamento coletivo, o site é catarse.me/kitcomcarinho.