Demonstrando intimidade com as duas baquetas coloridas, Josepher dos Santos, dois anos, ouvia atentamente o batuque vindo da sala para então distribuir toques sobre o tambor improvisado com lona de piscina. Com a palma da mão direita virada para cima, segurava uma das varetas e a tocava com exímia prática. A da esquerda dava a cadência. O pequeno é o mais novo integrante de uma ONG que há 17 anos ensina mais do que música aos jovens da periferia de Pelotas. Na Anjos e Querubins, com sede no bairro Getúlio Vargas, vislumbra-se esperança.
Filho de uma participante do projeto, Josepher faz parte da segunda geração de uma história iniciada com o objetivo de tirar quatro crianças da rua. Sem dinheiro para pagar cursos aos filhos, o ator e vigilante Ben Hur Flores, hoje com 50 anos, optou por usar os fundos de casa para ensinar teatro a eles e a dois sobrinhos. Morador de uma das áreas mais violentas do município do sul do Estado, Ben Hur preocupava-se com o tempo ocioso dos pequenos no turno inverso ao da escola e não os queria próximo ao tráfico de drogas, destino comum a alguns jovens do bairro. A iniciativa familiar despertou a atenção de outras crianças da área. Primeiro, vieram os amigos dos filhos. Depois, os amigos dos amigos. E, quando Ben Hur percebeu, o quintal da casa da família já abrigava quase 40 crianças, ávidas por alguma atividade extracurricular.
Dois anos depois de começar, o vigilante registrou a iniciativa como ONG Centro de Cultura, Esporte e Lazer Anjos e Querubins. Em seguida, partiu em busca de parcerias e da ampliação do território do projeto. Inicialmente, o teatro foi a atividade ofertada. Mas o conhecimento musical adquirido em um grupo de ritmistas de um bloco de Carnaval de Pelotas levou Ben Hur a incluir aulas de percussão para quem desejasse aprender a diferenciar os sons. Sem instrumentos para os jovens, recorreu a baldes, latas e chocalhos de garrafa pet preenchidos com tampas plásticas, lacres e pedras. Surgiu, então, a orquestra popular afrobeat Anjos e Querubins, que conquistou a simpatia da cidade — e fez as aulas de teatro ficarem em segundo plano.
Todas as crianças queriam aprender a batucar no improviso diferentes ritmos musicais. Para manter os jovens longe da violência, Ben Hur formou grupos de dança, de leitura e de escrita, além de permanecer com as aulas de teatro. Cada dia da semana era destinado a uma atividade gratuita no turno inverso ao da escola.
Uma das formas de apresentar o trabalho da orquestra é promovendo apresentações no calçadão de Pelotas. A divulgação ajuda a atrair os olhares de apoiadores e voluntários. Desde 2010, por exemplo, o professor de flauta Daniel Stepanski, 50 anos, participa do grupo de percussão e dá aulas de música às crianças. O grupo também já recebeu computadores para aulas de informática e instrumentos musicais, que ampliaram a orquestra. Cinco padarias da região doam os pães dos lanches oferecidos aos participantes.
O sucesso dos jovens músicos os levou a palcos tradicionais como o histórico Theatro Sete de Abril, no Centro de Pelotas. O maior orgulho de Ben Hur é ter ido com parte da trupe tocar no Complexo de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro, e em São Paulo, sempre a partir de convites de entidades sociais locais. A orquestra também foi convidada para se apresentar em Cabo Verde, mas, por falta de condições financeiras, não atravessou o Atlântico.
Em 2012, quando o projeto começou a se expandir para outros bairros de Pelotas, Ben Hur foi diagnosticado com distrofia macular de retina, uma doença genética que causa a perda da visão. A descoberta do problema quase o fez desistir da Anjos e Querubins. Foram os próprios jovens e os filhos, Ben Hur Junior e Thamires, que o convenceram a continuar. Depois de frequentar as aulas numa escola para cegos, o vigilante conseguiu adaptar-se à nova realidade. Hoje, com apenas 20% da visão periférica do olho esquerdo, ele permanece à frente da ONG, ofertando atividades em quatro bairros, e dos ensaios da afrobeat. O ouvido apurado o faz encontrar sons em qualquer objeto. Basta um balde nas mãos para embalar o suingue do funk americano, empolgando quem estiver ao seu lado.
— O projeto era apenas para crianças e adolescentes até 16 anos. Mas muitos que começaram comigo não quiseram se distanciar e continuaram na orquestra. Alguns deles, para a minha felicidade, já estão no mercado de trabalho. Por isso, fazemos os ensaios nas tardes de sábado. As dificuldades não vão me fazer parar — afirma.
Entre os motivos citados por Ben Hur para continuar com o projeto, está o reconhecimento público nos últimos anos. Em 2005, ficaram em quinto lugar em um concurso nacional de projetos sociais. Em 2016, foram o terceiro melhor projeto da cidade. No ano seguinte, a ONG foi agraciada pela Câmara de Vereadores com o título Utilidade Pública de Pelotas. As conquistas e as dificuldades da organização, como a falta de um apoiador para pagar o aluguel da casa onde é mantida a entidade, são compartilhadas por Ben Hur em uma rádio comunitária online semanalmente.
O vigilante aposentado não esconde as lágrimas ao falar sobre os ex-participantes da entidade que chegaram à universidade nos cursos de Pedagogia, Educação Física, Direito, Psicologia e Meteorologia – faculdade escolhida pelo filho de Ben Hur, que está com 23 anos. Quem segue na Anjos e Querubins, como a mãe de Josepher, a dona de casa Jaci dos Santos, 23 anos, torce para a entidade formar novos universitários. A ONG criou a hashtag #pormaisformaturas para ser a marca da entidade.
Para Ben Hur, cada vitória de um ex-aluno lhe traz a paz espiritual necessária para enfrentar a falta de visão. O vigilante aposentado garante ter se tornado um outro homem depois da criação da Anjos e Querubins:
— Eles não imaginam como me ensinaram a ser alguém melhor. Aprendi que a arte tem a capacidade de transformar pensamentos negativos em positivos. Cada vitória deles é a minha também. Cada moleque que hoje vai para a faculdade é como se fosse um filho meu.
"Mais formaturas, menos velórios"
A auxiliar de educação infantil Letiele Dias, 26 anos, participa das atividades da ONG desde os 10 anos. Ela começou no grupo de teatro formado por Ben Hur no bairro Getúlio Vargas, uma das regiões mais violentas de Pelotas. Aos 13, já era responsável pela Hora do Conto, na qual contava histórias para os pequenos. Hoje, enquanto segue com o desejo de cursar Pedagogia, participa da orquestra popular da Anjos e Querubins, emociona-se ao falar do criador da iniciativa e vê os filhos Kemilly, nove anos, e Wallace, três anos, darem os primeiros passos na música:
— O Ben Hur é um pai para todos nós, pois está sempre incentivando a gente a estudar, a ter um rumo na vida e focar em algo bom. Ele deixa de viver a vida dele para viver as nossas vidas. Graças a esse projeto, muitos dos nossos jovens não estão se perdendo. O Anjos e Querubins é uma luz no meio de toda a escuridão em que a gente vive. É um projeto por mais formaturas e menos velórios.
Para ajudar
Ben Hur Flores recebe ajudas pelo WhatsApp (53) 98452-3731. As mensagens de voz facilitam o contato, devido as suas dificuldades de visão.