O apartamento de cinco cômodos da produtora audiovisual Sinara Sonallio, a Nara, 41 anos, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre, se transforma num grande depósito de objetos capazes de levar sorrisos às crianças. Na sala, as caixas de brinquedos e as mochilas repletas de cadernos fazem desaparecer a televisão e o sofá. No quarto, o guarda-roupas divide espaço com um armário de duas portas destinado às roupinhas de bebê e aos pacotes de fraldas. Na cozinha, os bichos de pelúcia, já lavados, esperam um destino, o mesmo reservado àqueles ainda pendurados no varal.
A chow chow Maggy e a gata Rana, fiéis companheiras da dona, não parecem se importar com a falta de espaço em certos períodos do ano, especificamente a volta às aulas, o Dia das Crianças e o Natal – quando as atividades promovidas por Nara se intensificam. A corrente de solidariedade a que ela deu início, há quatro anos, ganhou força desde então. Pelo menos 8 mil crianças da Capital e da Região Metropolitana já foram presenteadas, graças à mobilização iniciada por Nara nas redes sociais. Hoje, a ação tem nome: Criança Mais Feliz.
Nascida em São José do Cedro (SC), Nara morou em Toledo e Maringá, no Paraná, antes de 2010, quando chegou a Porto Alegre. Sem saber ao certo o que fazer para ajudar os outros, jamais havia se envolvido com iniciativas solidárias. Até ver uma reportagem na TV sobre os flagelados nas enchentes de outubro de 2015, na Capital. Comovida, preparou chá e bolachas e levou às famílias abrigadas no ginásio Tesourinha. Impressionada com a movimentação dos voluntários, Nara se dispôs a auxiliar em outras funções. Naquele dia, ficou ali das 9h30min às 22h.
A experiência em organização de grandes grupos a fez, na manhã seguinte, retornar ao local e sugerir à Defesa Civil um formato de distribuição das doações. Acabou convidada pelos organizadores para coordenar a área de separação do material doado. Nos 20 dias subsequentes, cancelou compromissos e mergulhou no trabalho social. A dedicação exclusiva lhe consumiu seis quilos. Ouvir e ver as histórias de quem perdeu todos os bens materiais a abalou emocionalmente. O cansaço psicológico, ela diz, foi bem maior do que o físico.
Mesmo depois do fim das chuvas e do trabalho voluntário, Nara seguiu ajudando as famílias. E se apegou às crianças. Em novembro daquele ano, ela lançou na sua página de Facebook uma postagem pedindo presentes de Natal para os pequenos. O resultado superou as expectativas: Nara recolheu 500 brinquedos. Com a ajuda de amigos, garantiu o transporte para distribuir as doações no dia 22 de dezembro. O sorriso de uma das crianças contempladas naquela tarde inspirou o nome do projeto. Desde então, Nara jamais parou de ajudar o próximo.
– O propósito é quebrar o paradigma de que não se consegue fazer porque não se tem uma casa com espaço, porque não se tem um carro ou tempo. Se as pessoas soubessem o que podem fazer com o tempo que têm... – resume.
No início do ano seguinte, entusiasmada com a possibilidade de se tornar “a ponte entre quem deseja ajudar e os que necessitam de ajuda”, como se define, Nara descobriu, após pesquisa na internet, uma região de Porto Alegre que lhe parecia adequada para receber material escolar. Voltou a mobilizar sua própria rede social. E mochilas, cadernos e outros itens foram entregues aos estudantes de uma comunidade do Morro Santa Teresa. Na Páscoa, por indicação de uma amiga, arrecadou chocolates e os distribuiu às crianças da Vila Nazaré, na Zona Norte.
O mesmo ocorreu no Dia das Crianças, quando centenas da Vila das Antenas, em Cachoeirinha, na Região Metropolitana, foram presenteadas. A cada nova ação, a rede foi ganhando adeptos, até Nara perceber a necessidade de criar uma página especialmente para comunicar as iniciativas. Hoje, o Criança Mais Feliz tem logotipo e rede social própria no Facebook (com mais de 1, 7 mil seguidores) e no Instagram e vai além das ações com datas previstas. Uma das estratégias é a de atender comunidades que não são auxiliadas por outros grupos de voluntários. Antes das ações, o material recebido passa por uma inspeção minuciosa da produtora audiovisual. Se for usado e estiver sujo, mas em bom estado, é lavado por ela. As roupas de bebê são, inclusive, passadas por Nara.
Os brinquedos ficam separados em caixas identificadas pelas idades dos presenteados. Nada sai da casa da organizadora sem estar embalado para presente. Até a data da entrega, os embrulhos são abertos mais de uma vez por ela por temer o risco de trocar as embalagens. O contato com a comunidade a ser contemplada é feito desde meses antes das entregas. Nara costuma acionar lideranças locais responsáveis por cadastrarem as crianças, com nomes e idades, e os responsáveis de cada uma delas. É a partir dessa lista, controlada pela própria criadora da iniciativa, que as entregas são estabelecidas.
Além do trabalho como produtora audiovisual, Nara tornou o projeto parte fundamental da própria vida. Em períodos de mobilização, as 24 horas do dia se tornam insuficientes para cumprir a agenda de arrecadações e entregas. No Natal de 2017, por exemplo, ficou 36 horas sem dormir, tamanha a quantidade de tarefas desempenhadas.
Durante o primeiro encontro com a reportagem de GaúchaZH, na semana anterior a seis festas natalinas que seriam realizadas em quatro cidades da Região Metropolitana em 2018, o celular da produtora audiovisual não parou. O mesmo ocorreu no segundo encontro, este já em 2019, durante uma ação de volta às aulas. Eram ofertas de ajuda, pessoas buscando informações sobre como fazer parte da rede e inúmeros pedidos de roupas, calçados, remédios e comida. É comum mães pedirem leite para os filhos. Nara não esconde as lágrimas quando recorda situações já presenciadas durante as entregas.
– Uma criança desmaiou no meu colo porque estava desnutrida. Auxilio a família do menino até hoje. Há muitos precisando de ajuda. É só tu abrires o teu olho! Olha para a frente, não fique olhando de lado, que tu vais conseguir fazer mil coisas – ensina, marejando os olhos.
Para manter a corrente ativa o ano inteiro, Nara tem parceiros fixos, entre escolas da rede privada, lojas, restaurantes e grupos formados dentro de empresas. Todos os contatos estão dispostos num mural no quarto da produtora. Por não ter carro, ela depende de amigos para buscar as doações. Nos últimos anos, a rede ganhou adeptos de Canoas, Novo Hamburgo, Gravataí, Cachoeirinha e do Interior. Muitos dos que começaram doando tornaram-se voluntários ativos da causa. O maior desejo da produtora é desvincular o nome dela do Criança Mais Feliz para não deixar a iniciativa com caráter tão pessoal.
– Tenho certeza de que não é um peso a minha passagem pelo projeto, pois ele já fez muita diferença na vida das crianças e formou uma rede com pessoas que querem continuar ajudando. Eu mesma aprendi a ser voluntária. A recompensa é esta: saber que não estou aqui à toa – avalia.
Nara teve o esforço reconhecido no ano passado pela Defesa Civil. Junto a outras quatro personalidades, recebeu o título da Amiga Honorífica da Defesa Civil de Porto Alegre pelos serviços prestados. Em casa, o diploma concedido pelo órgão é guardado com orgulho no mesmo espaço reservado às centenas de fotos que rememoram ações realizadas com seu grupo de voluntários.
"Ela faz muito com pouco"
A dona de casa Gisele Santos Inácio, 34 anos, moradora de Canoas, conheceu Nara num set de gravações. Convidada para contribuir em uma das ações promovidas pela produtora audiovisual, Gisele não conseguiu mais se afastar das mobilizações. Começou reunindo brinquedos, roupas, calçados e material escolar entre amigos e familiares para entregá-los a Nara. Hoje, faz parte da equipe de voluntários que ajudam na produção das ações. Ao lado do filho Vitor Bezerra, nove anos, ela participa da separação e das entregas das doações. Sobre a amiga, diz:
– Defino a Nara como um grande ser humano, com um enorme coração. Deveria haver mais pessoas assim no mundo: unidas pela mesma causa. Ela faz muito com pouco. Move o mundo por uma causa, e faz muito tempo. Tira do próprio salário para colocar nas doações. Tenho a certeza de que o Criança Mais Feliz vai além por causa dela.
Para ajudar
Acesse a página facebook.com/criancamaisfelizrs