Espalhadas pela casa da engenheira química e professora universitária Rejane Rech, 56 anos, as dezenas de estátuas de diferentes tamanhos de São Francisco de Assis recebidas de presente sinalizam a paixão dela pela causa animal. Há três anos, Rejane se dedica ao Engenharia Solidária, um projeto que recicla e revende tampas plásticas para comprar ração com o dinheiro arrecadado. O alimento é repassado a duas ONGs e a 25 protetores independentes, responsáveis por cuidar de mais de 300 animais vítimas de maus-tratos em Caxias do Sul, na serra gaúcha.
Criado em agosto de 2015 dentro do curso de Engenharia de Produção da Universidade de Caxias do Sul (UCS), por sugestão de uma aluna, o projeto pretendia ajudar, inicialmente, a ONG Proteção Animal Caxias (PAC), uma das mais antigas entidades em funcionamento no município. Porém, o primeiro mês de arrecadação foi desanimador: rendeu apenas R$ 16. Rejane diz que sentiu “vergonha” ao prestar contas aos primeiros amigos engajados na causa. Apesar da frustração, no entanto, não desistiu. Dois meses depois, com as primeiras postagens de mobilização nas redes sociais, chegou a R$ 232.
Mas a visibilidade definitiva veio quando o Engenharia Solidária estava prestes a completar um ano de funcionamento. Sem sede própria, o projeto ganhou da UCS três salas de 10 metros quadrados cada para abrigar o material da reciclagem. Na mesma época, o Sindicato das Indústrias de Material Plástico, em parceria com a prefeitura de Caxias, realizou uma gincana nas escolas para arrecadar tampinhas e repassá-las à entidade. O sindicato ainda doou ao projeto 70 coletores de tampas, recipientes demarcados para reunir os objetos, que foram distribuídos no comércio local. A ação mobilizou a cidade. Outras 300 caixas foram entregues pela JP Embalagens e espalhadas por vários bairros. A empresa, até hoje, cede coletores, feitos de papelão. Desde então, a arrecadação, assim como o número de voluntários do Engenharia Solidária, só aumentaram.
— As doações cresceram e pudemos ampliar nossa rede de ajuda. Passamos a fornecer aos cuidadores independentes, aquelas pessoas que recolhem e mantêm muitos animais em casa. Na maioria das vezes, são pessoas humildes, que amam os animais mas que não têm apoio para poder alimentá-los adequadamente — explica Rejane.
Por mês, o Engenharia Solidária costuma arrecadar cerca de R$ 6 mil. O dinheiro é repartido entre as entidades e ajuda a alimentar os cães recolhidos.
Vítima dos próprios donos, Cabrita, uma cadela de pelos brancos com cerca de 12 anos, foi uma das que ganharam a ração enviada pelo grupo. Cabrita não consegue manter a língua dentro da boca desde que perdeu parte dos dentes e do maxilar devido aos maus tratos. Resgatada em janeiro de 2018, ela ficou em um local provisório na PAC. Quatro meses depois, ganhou um novo lar e quatro irmãos – todos cães considerados inadotáveis por terem algum problema de saúde. Hoje, ela tem espaço para brincar, uma almofada aconchegante só para ela e o carinho da nova dona – a própria mentora do Engenharia Solidária.
Para Rejane, o que cativa as pessoas é a possibilidade de ajudar. Muitos, ela percebe, têm o desejo de contribuir com a causa, mas não têm condições financeiras ou tempo disponível. Nesses casos, separar as tampas plásticas os faz se sentirem úteis. Orgulhosa, reforça que a mobilização atinge todas as classes sociais. Um exemplo são as mensagens enviadas por ex-alunos, hoje empresários bem-sucedidos, quando avisam terem recolhido as tampas inclusive durante viagens de negócios.
— Quando começamos a arrecadar tampinhas, percebemos o lixo que nós produzimos. Hoje, nós já passamos das 80 toneladas de tampas que foram retiradas do meio ambiente diretamente para a reciclagem. Isso rendeu, da metade de 2015 até agora, R$ 150 mil para o projeto — destaca.
Professora há três décadas na UCS, Rejane trabalha em uma sala em frente às três peças nas quais são separadas as tampas. Da janela, controla a entrada e a saída dos voluntários. Para flexibilizar os horários, cada um recebe as próprias chaves. Há quem frequente o local duas horas por semana. E há os assíduos, que passam por lá todas as tardes. Os novos recebem um treinamento sobre triagem antes do primeiro dia de trabalho. Por ser um ambiente estreito, apenas três pessoas podem trabalhar juntas por vez no mesmo espaço.
Cada tampa é lavada e tem o plástico interno retirado. Quando um saco é completado, passa pela pesagem e recebe uma identificação de conferência. O material é levado para uma sala seguinte, onde ficam as tampas limpas acomodadas. De lá, segue para a terceira sala, a de expedição. A Estação da Ração atua voluntariamente para levar o material ao destino final.
O grupo ainda enfrenta o desafio de conscientizar as pessoas sobre as doações. É comum o Engenharia Solidária receber sacos com lacres, outros tipos de materiais e até itens que não deveriam ser descartados, como um anel de ouro localizado por Rejane no início de janeiro. A dona apareceu depois de uma divulgação na rede social do projeto.
A professora valoriza o trabalho sem remuneração da equipe. Junto aos outros voluntários, ajuda a carregar sacos e a separar material, mesmo em dias de calor ou frio intenso – as salas são feitas de blocos de concreto, intensificando a temperatura de acordo com a estação. Há tarefas bem definidas: além dos responsáveis pela limpeza e pela separação, há quem faça as buscas nos mais de 300 pontos de coleta (atividade que a professora também realiza), quem contata e recruta os novos voluntários e quem fica responsável pela divulgação.
Se não está envolvida com a reciclagem ou com a universidade, Rejane dedica tempo aos três cães apadrinhados em lares temporários e aos cinco adotados nas entidades para as quais destina a ração comprada. Além de Cabrita, Rejane tem em casa Joaquim, um vira-latas de seis anos que tem medo de crianças devido aos maus tratos sofridos, Valente, que perdeu a pata traseira direita, Fumaça, resgatada depois de ficar dias presa a uma corrente curta e sem comida, e Flor, atropelada ainda filhote ao ser abandonada na estrada pelo ex-dono.
— Tenho consciência de que o Engenharia Solidária não resolverá o problema como um todo. As políticas públicas, como as proibições da venda de animais em pet shops e da criação comercial de animais, é que resolverão. Mas faço a minha parte para um mundo melhor — sintetiza.
Mãe de dois filhos, a designer Roberta e o engenheiro de produção Roberto, Rejane já mantinha a venda online de livros universitários para contribuir com entidades protetoras de animais. Mas está convicta de ter dado um novo sentido à vida ao criar o Engenharia Solidária. Ela chora ao ressaltar o projeto como o seu verdadeiro legado, e não se imagina distante dele. Pelo contrário, quer seguir sendo exemplo para a família, os amigos e os alunos, demonstrando que sempre haverá um tempo livre para dedicar-se a uma causa social.
"Me sinto mais útil"
A assistente administrativa aposentada Rosangele Calliari Bedin, 63 anos, se tornou voluntária seis meses depois do início do projeto. Simpatizante da causa animal, ela encontrou no Engenharia Solidária o caminho que buscava para o voluntariado. Hoje, é braço direito de Rejane e dedica pelo menos quatro dias da semana à coleta e à seleção do material a ser reciclado.
— O projeto é muito gratificante porque conseguimos ajudar muito a causa animal. Me sinto mais útil desde que comecei a fazer parte do Engenharia Solidária. E a Rejane nos motiva. É uma pessoa muito disponível e engajada, que não para um minuto. É um exemplo de vida.
Para ajudar
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