Quando a guerra chega ao fim e a maioria dos jornalistas volta para casa, a francesa Anne Poiret faz as malas e ruma para o front. Ela não cobre o auge do conflito, prefere o depois, as feridas que as batalhas deixaram naqueles que mais sofrem: os civis. Vencedora do Prix Albert Londres, o principal prêmio do jornalismo francês, Anne é uma globetrotter. Perambula por alguns dos mais ensanguentados territórios do planeta para mostrar a vida de quem fugiu do horror. Esteve em Mossul, a última cidade a ser libertada do jugo do grupo terrorista Estado Islâmico no Iraque, visitou a Líbia e perambulou pelos maiores campos de refugiados do mundo para rodar um de seus mais novos documentários, exibido e debatido em Porto Alegre no dia 5 – ocasião em que conversou com GaúchaZH. O filme revela o modo como as Nações Unidas administram campos que abrigam milhões de refugiados em todo mundo, criando um país virtual do tamanho da Holanda.
Bienvenue au Réfugistan (“Bem-vindo à terra dos refugiados”, em uma tradução livre) é um documentário rodado em vários campos de refugiados pelo mundo, no Quênia, na Tanzânia, na Jordânia e na fronteira da Grécia com a Macedônia. Que diferenças você encontrou nesses lugares no tratamento às pessoas que recebem?
O objetivo era justamente mostrar a situação dos campos em países diferentes, alguns deles novos, outros já estabelecidos há mais tempo. No caso da Tanzânia, filmamos em um campo mais antigo. Mesmo assim, conseguimos registrar a chegada de refugiados vindos do Burundi (pequeno país africano que vive, desde 2015, uma crise humanitária em razão de problemas políticos, econômicos, fome e epidemia de malária). Foi um momento importante porque conseguimos observar o instante em que essas pessoas eram recebidas no campo. Por isso, filmamos na Tanzânia. Mas cada país tem uma história e graus diferentes de evolução desses territórios. A ideia era apresentar também imagens de outros campos nos quais as pessoas permanecem por longo tempo. São locais que se transformam e passam a não ter mais a função para a qual eles haviam sido criados. Por exemplo, Dadaab, que é conhecido como “Monstro”, o maior de todos os campos de refugiados, na fronteira entre Quênia e Somália. Queríamos mostrar como esse território gigantesco se transformou em algo completamente diferente em um período de um ano (a intenção original era de que Dadaab abrigasse até 90 mil pessoas, mas atualmente vivem no complexo mais de 463 mil refugiados, incluindo cerca de 10 mil pessoas nascidas no local).
O filme mostra que esses locais não são nem cidades, nem prisões. Parece que o tempo para para essas pessoas. Como é a vida em Dadaab? O “Monstro” é realmente impressionante?
O campo foi criado em 1991. O governo do Quênia tem dito que vai acabar com o local e que os refugiados poderão voltar para a Somália. Por isso, não há autorização para construir prédios de alvenaria. As únicas edificações assim são os postos policiais e das Nações Unidas. Os refugiados não podem construir, embora o campo tenha quase 20 anos. O que mais me impressionou foi o ambiente em geral. Porque há escolta da polícia queniana o tempo inteiro. E isso é meio assustador, aumenta o grau de violência possível. Eu estava mais impressionada com esse acompanhamento do que com o campo em si. Violência dentro do campo existe, pessoas foram raptadas, entre outros registros de criminalidade, mas o mais impressionante é a polícia do Quênia. É um negócio para eles. Eles precisam assustar. Você não consegue fazer o seu trabalho como documentarista porque, a cada dois minutos, alguém diz: “Não podemos ficar aqui, é muito perigoso!”. Essa atitude deles aumenta e muito a sensação de insegurança.
Lidar com as necessidades urgentes de milhares de refugiados É um desafio para governos, organizações não governamentais e também para as Nações Unidas. Apesar das diferentes realidades, há um sistema padrão no que diz respeito a Logística, Manutenção e comida nos campos ao redor do mundo?
Sim. Todos os campos são diferentes, mas têm como denominador comum a presença do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). A ideia de ter esse padrão também aparece no documentário desde a concepção da ideia, junto ao canal de TV Arte (da França, que exibe esse e outros documentários de Anne). Foi a emissora que pediu que fossem retratados sete campos diferentes.
Você testemunhou episódios de violência nos campos?
Todos os campos têm violência sexual e de gênero. Isso é comum a todos porque esses lugares são formados por uma mistura de pessoas, às vezes procedentes de países diferentes: Congo, Burundi... Alguns refugiados são ex-combatentes, ex-militares. Suspeita-se de que o “Monstro”, por exemplo, seja uma base utilizada pelo Al-Shabaab (grupo terrorista islâmico que atua principalmente no sul da Somália). Tudo isso compõe uma violência cotidiana nos campos. Supostamente é um lugar seguro, mas não é o que ocorre sempre.
Se um governo quer promover a criação de um campo de refugiados, isso significa dizer que não quer integrar (essas pessoas à sociedade). Se o Brasil for abrir um campo, por exemplo, para os venezuelanos, quer dizer que vai deixá-los ali e, depois que a crise passar, fazê-los voltar para o seu país.
ANNE POIRET
Jornalista, escritora e documentarista
Como nasceu a ideia de documentar os campos?
Não foi exatamente um pedido do canal Arte. Tenho trabalhado como documentarista há alguns anos, e isso acabou levando a esse projeto. Não trabalho em países em guerra, mas em nações que estão em período de pós-guerra, ou então com temas que cercam os conflitos. Isso foi ao encontro do que os produtores do canal estavam pensando como projeto.
Um dos problemas que você traz à tona no filme é a invisibilidade dos refugiados. Mesmo na imprensa, esse tema só vira notícia diante de tragédias.
Como jornalista, também tenho essa sensação. Há alguns anos, fui ao Iêmen cobrir os campos de refugiados, mas não entrei neles. Depois do início desse projeto, comecei a ler toda uma literatura escrita por pesquisadores, sociólogos, antropólogos e historiadores que estudam essa realidade e a organização dos campos. Antes, como público que assistia a documentários e lia notícias, e mesmo como jornalista, eu sabia da existência dos campos, mas me perguntava sobre a permanência das pessoas neles. O que vai acontecer com o passar do tempo? Com esse filme, entrei para registrar os absurdos que ocorrem nos campos e como eles seguem existindo depois das guerras ao longo do tempo.
No auge da crise de refugiados que ingressaram na Europa, em 2015, vários países fecharam suas fronteiras. Temos observado o crescimento de governos e grupos conservadores no continente, com uma agenda contrária à migração. Você é pessimista em relação ao futuro dos refugiados na Europa?
Sou muito pessimista. A última parte do documentário foi rodada na fronteira entre a Grécia e a Macedônia, em dezembro de 2015, justamente alguns dias depois dos atentados em Paris (série de ataques ocorridos em 13 de novembro). A Europa fechou brutalmente as fronteiras desde então. Como jornalista, presenciei esse fechamento. E foi impactante para mim, porque anos antes eu havia gravado para a emissora France 5 uma reportagem sobre os mais de 20 anos desde a queda do Muro de Berlim. Essa memória da fronteira entre os blocos Leste e Oeste já não existia mais, porque se vivia esse sonho de uma Europa totalmente aberta. E, em 2015, pá: fechou. Foram dois dias e três noites de gravações. Presenciei fisicamente a constituição dessa nova fronteira novamente entre Macedônia e Grécia. A Grécia é União Europeia. Em dois dias, começaram a colocar arame farpado. Nossa geração que sonhou com uma Europa aberta criou de novo fronteiras físicas no continente.
Sou pessimista em relação ao futuro dos refugiados. (Desde a queda do Muro de Berlim) vivia-se o sonho de uma Europa aberta. E, em 2015 (após os atentados de paris), pá: fechou. Nossa geração, que sonhou com a europa aberta, criou de novo fronteiras físicas no continente.
ANNE POIRET
Jornalista, escritora e documentarista
Uma crítica que se faz à sociedade europeia em geral, e francesa em particular, é a dificuldade de integrar os migrantes, que muitas vezes vivem nas periferias e são cooptados por grupos extremistas. No caso dos atentados de Paris, os terroristas saíram de um desses guetos, Mollenbeck, localizado na Bélgica.
Nesse caso, há uma confusão. Não se tratava de refugiados. Esses terroristas que realizaram os ataques a Paris se aproveitaram do fluxo de refugiados. É o que acontece: há alguma confusão no uso dos termos “refugiados” e “terroristas”. A temática maior das eleições europeias tem sido e vai continuar sendo a dos refugiados.
É que grupos políticos colocam tudo na conta de refugiados. Dizem, por exemplo, que as movimentações deles facilitam a entrada de terroristas.
No caso da França, nenhum dos terroristas que foram para a Síria e voltaram para atacar era refugiado. Todos nasceram na França ou na Bélgica, e vários deles nem eram muçulmanos. Eram católicos.
A Europa já lida com a questão de refugiados há décadas. na América Latina, estamos começando a vivenciar o problema com a crise na Venezuela. Abrir as fronteiras é solução? Ou criar campos de refugiados no Brasil?
Não sou especialista em política latino-americana. Mas, se um governo quer promover a criação de um campo, isso significa dizer que não quer integrar. Um campo é uma coisa temporária. Se o Brasil for abrir um campo, por exemplo, para os venezuelanos, quer dizer que vai deixá-los ali e, depois que a crise passar, fazê-los voltar para o seu país. Não conheço bem a situação do Brasil, mas penso que o país tem uma sociedade civil forte porque está dando um jeito. Como na França. A França tem uma situação dupla: em nível político, sobretudo com o governo de Emmanuel Macron, há uma política dura, intransigente com os refugiados. Menos do que outros países, mas, ainda assim, com um discurso duro. E a sociedade civil é superorganizada, faz muitas coisas para os refugiados. Embora muitos estejam presos como criminosos. A sociedade civil francesa se organiza em campos no interior para apoiar. Quando não há campos, a sociedade civil se organiza para ajudar.
A França tinha a Selva de Calais, acampamento improvisado de migrantes e refugiados que tentavam atravessar o Canal da Mancha para chegar ao Reino Unido. O local foi destruído pelo atual governo. Os refugiados voltaram?
Calais foi desmantelado, mas os refugiados voltaram. O maior impacto será a saída do Reino Unido da União Europeia. Vai haver uma divisão de fronteiras entre França e Inglaterra, caso o Brexit se confirme. O que vai acontecer agora? A França vai manter esse campo?
Você fez um filme sobre a venda de armas francesas para países que violam direitos humanos. O Brasil também já teve essa política. Por um lado, os países assinam tratados que regulam o comércio de seu arsenal, mas, por outro, vendem para regimes questionáveis, como o da Arábia Saudita. Isso mostra o cinismo da comunidade internacional?
Sim, enorme. O discurso é dúbio, cínico. Em nome dos direitos humanos, dos quais a França é porta-voz, ela diz: “Somos uma potência independente e devemos ter autonomia, o que inclui uma indústria de armamento forte, que nos dá a possibilidade de vender”. A França discursa que, para garantir sua independência, tem de ter essa possibilidade de vender armas. E acaba vendendo para fora, de onde surgem grandes clientes. Só que alguns desses clientes, as únicas potências que realmente podem comprar, são Arábia Saudita, Egito, países que não respeitam os direitos humanos. Então, a França faz isso: fecha os olhos e o nariz e para poder arrecadar com o comércio. É um discurso contraditório. Estou lançando um livro na França justamente sobre o tema, uma versão do documentário Mon Pays Fabrique des Armes (2018) (“Meu país fabrica armas”, em tradução literal).
Como foi o trabalho em Mossul, a última cidade do Iraque a ser libertada do grupo terrorista Daesh? (Os franceses usam o termo “daesh” para se referir ao Estado Islâmico como forma de desafiar a legitimidade da organização devido às conotações negativas da palavra, que significa “pisar” ou “esmagar”.)
Fui três vezes a Mossul para acompanhar a pessoa que foi nomeada pelo governo do Iraque para coordenar a reconstrução da cidade. Nos últimos dois anos, nada aconteceu em Mossul em termos de reconstrução. Entrevistei várias pessoas que moram lá e sofreram os ataques da coalizão. Conheci vários meninos perseguidos pelo Daesh. Pessoas que fugiram e viveram em campos e, agora, voltaram a Mossul. Essas pessoas são como fantasmas, não têm direito a nada. As crianças dessas famílias não têm o direito de frequentar as escolas. Estão dentro da cidade, mas sem direito algum.
Conheci vários meninos perseguidos pelo Daesh (Estado Islâmico). Pessoas que fugiram e viveram em campos e, agora, voltaram a Mossul. Essas pessoas são como fantasmas, não têm direito a nada.
ANNE POIRET
Escritora, jornalista e documentarista
Quanto tempo você fica em cada missão gravando?
O dinheiro é pouco, então, não fico muito tempo. Uns 15 dias em cada local. Para Bienvenue au Réfugistan, fiquei no máximo três semanas em cada país. No campo em si, não tenho permissão para ficar muito tempo – entre três e cinco dias. Na Jordânia, foi especialmente complicado: só dois dias, e com um agente do governo sempre nos acompanhando, andando atrás, dizendo que agradecia muito ao rei da Jordânia. Antes, ele conversou com todas as pessoas as quais eu ia entrevistar. Não estávamos preocupados em mostrar as práticas políticas; queríamos mostrar como funciona o campo. Nossa intenção não era criticar a Jordânia, e, isso sim, mostrar a dificuldade que é entrar, fazer essas entrevistas e como funcionam as autorizações para os campos. Mas ele ficou ali, fiscalizando.