O relatório anual de 2022 do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), vinculado à Universidade de Brasília (UnB) e parceiro do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, traz a seguinte afirmação: "Dois novos fatos sociais vêm chamando a atenção nos estudos das migrações internacionais no Brasil: o processo de feminização das migrações, e um incremento contínuo na chegada de crianças e adolescentes imigrantes, solicitantes da condição de refugiados e refugiadas no país".
Esse movimento, diz o OBMigra, é percebido desde 2015, mas ganhou força em 2021. Naquele ano, do total de 151.155 imigrantes de todas as nacionalidades que ingressaram no país, 67.772, quase a metade, eram mulheres.
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"O processo de feminização e o aumento de crianças e adolescentes se concretiza com a chegada e registro de nacionais da Venezuela. (...) Nos anos de 2019, 2020 e, sobretudo, 2021, a participação feminina foi ampliada em virtude do crescimento da imigração venezuelana, que apresenta peso maior de mulheres em relação a outras nacionalidades, como a haitiana", diz o relatório do OBMigra.
Um recente balanço do observatório, contendo dados de janeiro de 2017 a junho de 2023, mostra que a população migratória venezuelana é composta por 48% de mulheres, ao mesmo tempo em que 27% do contingente que chegou ao Brasil têm idade entre zero e 17 anos.
Os dados refletem o que se vê no cotidiano: mães que vêm ao Brasil sozinhas, com filhos pequenos ou jovens. Esse é o enredo da via-crúcis de Luzneidy Guerrero Fernandez, 29 anos. Na Venezuela, ela estava grávida do segundo filho quando o marido "sumiu". Desamparada, com dificuldade de acessar serviços de saúde e com o histórico de ter sofrido um aborto espontâneo, Luzneidy atravessou a fronteira com uma menina no colo e um menino no ventre.
— Vim ao Brasil para ter o meu filho. Ele nasceu em um hospital de Boa Vista (capital de Roraima). Deu tudo certo — relata a imigrante.
Ela ficou um ano em Boa Vista, período em que chegou a habitar a rua com a prole, até que conseguiu contato por telefone com o marido ausente.
— Expliquei que estávamos na rua. Ele comprou passagens para Porto Alegre porque sabia que eu tinha parentes aqui (dois primos) — conta Luzneidy, que chegou ao Rio Grande do Sul no final de julho de 2023.
No dia 3 de agosto, ela estava com os pequenos e uma prima no Cibai-Migrações, missão da Paróquia Nossa Senhora do Rosário de Pompeia para acolher imigrantes, no Centro de Porto Alegre. Conseguiu receber alimentos e roupas de frio.
Atualmente, ela divide moradia com um primo no bairro Bom Jesus. Tendo de cuidar dos filhos de seis meses e de quatro anos, vislumbra dificuldades para arrumar um emprego de carteira assinada. O plano para desatar os nós é comprar, em sociedade com a prima, um carrinho para vender "hamburguesa": pão, alface, tomate, cebola, pepino, queijo, presunto e bife de carne de gado moída.
Se tudo der certo, Luzneidy e a prima, que também tem dois filhos, irão intercalar turnos na venda das hamburguesas e nos cuidados aos pequenos.
A feminização e a juvenilização da migração trazem desafios ao poder público e à rede de acolhimento da sociedade civil.
— Com tantos filhos, vão ter dificuldade de trabalho por não ter com quem deixar as crianças. Temos carência de creches no Brasil para os próprios brasileiros. Elas não têm o suporte familiar de quem está no seu país. Isso traz impacto terrível do ponto de vista da chance dessa mulher se organizar, melhorar de vida e se constituir profissionalmente — diz Maria do Carmo Leal, uma das coordenadoras de pesquisa da ENSP/Fiocruz sobre as venezuelanas.
O mesmo levantamento, divulgado em março de 2023, apontou alta taxa de fecundidade: entre as imigrantes mapeadas, 40% têm dois ou três filhos, e 16% têm quatro ou mais. O estudo identificou que, dentre as venezuelanas no Brasil, 47% delas fazem uso de algum método contraceptivo, ante média de 80% das brasileiras.
— O sistema de saúde atendeu como pôde, mas não teve o devido reforço. Houve dedicação em atender as demandas imediatas de saúde, mas não se deu conta de trabalhar a oferta de contraceptivos — alerta Maria do Carmo.
A feminização e juvenilização da migração foram fatores que contribuíram para o surgimento da Casa de Acolhida São José, em Pacaraima (RR), dedicada a abrigar exclusivamente mulheres e crianças venezuelanas. Jornalista humanitária e gestora de comunicação e projetos da São José, Adriana Sangalli deparou com diversos casos.
— São principalmente jovens que têm dois, três, quatro filhos, por vezes com parceiros diferentes. É comum ver mulheres vindo sozinhas no desespero da sobrevivência delas e das crianças — relata.