Moreidy Valera é uma heroína anônima. A venezuelana de 25 anos é mãe, tem três filhos, e foi deixada para trás pelo marido em novembro de 2020. Eles estavam juntos no Brasil desde maio de 2018, passaram mais de um ano vivendo em abrigos em Roraima, após cruzarem a fronteira, até que embarcaram ao Rio Grande do Sul com o apoio da Operação Acolhida. Chegaram a Canoas em janeiro de 2020 e se mudaram para Gravataí, cidade em que o casal se separou. O ex-marido foi embora para São Paulo. Moreidy ficou com as três crianças. Alissa tem oito meses, o cabeludo encaracolado Lucas tem dois anos e a mais velha, Rachell, está com cinco. A mãe não recebe pensão. Por vezes, sem regularidade de prazo e de valores, o ex-marido faz alguma remessa. Com três crianças para cuidar, ela não consegue emprego formal.
— Quando fiquei sozinha, foi o momento em que decidi que teria de fazer algo. Tenho uma amiga venezuelana que me recebeu por um tempo no processo da separação. Ela me falou sobre laços e tiaras para crianças. Inicialmente pensei que não poderia, mas quando o ser humano se propõe a fazer algo, ele pode ser grande — diz Moreidy.
Foi então que o improvável aconteceu: sem dinheiro, desconhecendo as leis locais e enfrentando a barreira do idioma, ela virou uma pequena empresária. Aprendeu a fazer arte na internet. À noite e pela madrugada, enquanto o triunvirato infantil dorme, ela produz tiaras, lenços, prendedores de bico e outros adornos para crianças. Vende pela internet e, às vezes, em um carrinho metálico que usa para expor seus produtos pelas ruas próximas de casa. A empresa Laços da Amore é hoje o sustento de Moreidy e dos três filhos. Um sustento que ainda é escasso: ela vende, em média, R$ 40 por semana, mas se diz obstinada por alavancar seu pequeno negócio.
Ela faz parte de um grupo cada vez maior de imigrantes venezuelanos que estão empreendendo no Brasil, contando com apoio da rede local de acolhimento. No caso de Moreidy, o auxílio para virar empresária veio do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai Migrações), entidade vinculada à Igreja Nossa Senhora do Rosário de Pompéia, de Porto Alegre.
A venezuelana foi incluída pela instituição no programa Inserção Sociolaboral, destinado a formar microempreendedores e alocar imigrantes em vagas de emprego. Moreidy teve aulas de administração de empresas e noções de marketing, obteve auxílio para idealizar o seu produto e para fazer o registro empresarial nos órgãos públicos.
— O dia em que abri a minha MEI (Microempreendedor Individual) foi maravilhoso. Eu vim para o Brasil porque na Venezuela não tinha futuro. E meus filhos precisam de futuro — sonha a imigrante.
O dia em que abri a minha MEI (Microempreendedor Individual) foi maravilhoso. Eu vim para o Brasil porque na Venezuela não tinha futuro. E meus filhos precisam de futuro
MOREIDY VALERA
imigrante venezuelana
O auxílio do Cibai Migrações foi além. A entidade repassou R$ 1,5 mil para que Moreidy formasse o capital inicial de sua empresa. Com o valor, ela comprou insumos para as duas primeiras produções de tiaras e lenços, um computador com impressora e o carrinho metálico em que expõe o trabalho.
— O dinheiro é para promover o negócio e o desenvolvimento do imigrante. Não é para comprar comida, por exemplo — diz Anderson Hammes, diretor do Cibai Migrações e pároco da Igreja Pompéia.
Nos meses de maio, junho e julho, o programa da instituição formou 130 microempreendedores individuais - todos receberam R$ 1,5 mil de capital inicial. Isso soma, de largada, investimento de R$ 195 mil.
O Cibai Migrações venceu um edital internacional e financia o programa com aportes de três instituições mantenedoras: a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Scalabrini International Migration Network (SIMN).
Em setembro, o Cibai Migrações dará início a novas turmas do curso de formação e de apoio em dinheiro para mais cem microempreendedores venezuelanos.
— Na segunda etapa, vamos atender somente mulheres imigrantes porque muitas têm filhos. Elas têm de cuidar das crianças e precisam empreender. Descobrimos que a mulher é a cabeça de família, tem mente empreendedora e trabalha com afinco — afirma Hammes.
Em outra ponta do programa Inserção Sociolaboral, a instituição vinculada à Igreja Católica aciona os seus profissionais de recursos humanos. Eles contatam empresas parceiras que tenham vagas de emprego abertas, sobretudo na indústria instalada no interior do Rio Grande do Sul. Entre maio e julho, 488 venezuelanos foram inseridos em postos de trabalho formal.
Embora a crise econômica e a pandemia tenham colocado alguns venezuelanos ao lado de brasileiros em semáforos a pedir ajuda, a avaliação de profissionais que atuam nas redes de apoio é de que eles estão conseguindo se encaixar no mercado de trabalho, sobretudo em vagas de serviços mais pesados, como nos frigoríficos.
Para Moreidy, o futuro está em Porto Alegre, cidade em que passou a morar depois de ser contemplada por outro programa do Cibai Migrações, o do aluguel social. Por dois meses, a entidade está pagando o aluguel dela em um modesto apartamento térreo, com duas peças e banheiro, no bairro Rubem Berta, na zona norte.
Ela diz estar bem ali. Na terça-feira (17), ainda não havia caído a noite quando serviu a janta para os filhos: sopa de batatas e de macarrão. Banana na sobremesa, fruta que despertou o apetite do pequeno Lucas.
Apesar de o repórter ter tomado a liberdade de chamar Moreidy de heroína anônima, ela rejeita o título, consciente de que é seu dever manter a boa luta:
— Não sou heroína. Só estou fazendo o que a vida me pede para sobreviver.
Maria abriu uma pet shop em Caxias do Sul
Cachorros, gatos e até um coelho de estimação já ficaram aos cuidados da venezuelana Maria Belisario para serviços de banho e tosa. Aos 42 anos, ela é a proprietária da pet shop Bom pra Cachorro, no bairro Fátima, em Caxias do Sul. Depois de sair da Venezuela com toda a família quando passou a sofrer os efeitos do desabastecimento de alimentos, além do medo de conviver com a violência urbana, ela se considera uma pessoa de sorte. Tornou-se empresária de um sortido estabelecimento que, além de embelezar os animais, comercializa rações, casinhas para caninos, coleiras e um sem-fim de outros produtos e enfeites.
Seu esposo, Axel Santos, de 29 anos, trabalha como técnico em manutenção de cozinha de uma loja do MCDonald's. Os filhos são de uma relação anterior de Maria. O mais velho, de 19 anos, é atendente na mesma lanchonete de Axel e a caçula, Valeria, de oito, frequenta a escola, onde virou atração para os coleguinhas que adoram ouvir a tradução de palavras do português para o espanhol. Eles alugam uma boa casa de alvenaria e fachada amarela em frente à pet shop, com um cacto e uma laranjeira carregada de frutas no pátio.
— Temos clientes, somos conhecidos no bairro, as pessoas têm confiança e trazem os cachorros. Dá para pagar as contas. Não dá para reclamar. Estamos sendo muito abençoados — conta Maria.
Chegar ao atual estágio não foi fácil. Enxergando-se sem futuro na Venezuela, decidiram sair. No país bolivariano, Axel era missionário da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, cujos fiéis são conhecidos como os mórmons. Isso facilitou para que os quatro integrantes da família fossem trasladados sem custos de Boa Vista, em Roraima, para Porto Alegre em um avião. No aeroporto Salgado Filho, irmãos da igreja os esperavam de carro. Em fevereiro de 2019, foram levados imediatamente para Caxias do Sul, cidade em que um apartamento estava alugado pela instituição religiosa por três meses, para que eles pudessem organizar o próprio sustento.
— A geladeira estava cheia de comida, tudo preparado para nos receber, foi muito bonito. Nem sabíamos que existia Caxias. Chegamos aqui e fazia frio, o tempo era nublado, as pessoas eram loiras. E eu achava que o Brasil era praia e calor. Foi uma surpresa — diz Maria.
Ela recorda que, no primeiro ano, ficou sucessivamente gripada em função do frio. Agora, diz estar adaptada. Como ela já trabalhava no ramo dos animais de estimação na Venezuela, decidiu procurar pet shops em Caxias. Fez trabalhos esporádicos em algumas lojas na cidade, depois passou a atender a domicílio até que decidiu oficializar a abertura da sua loja. Inaugurou o estabelecimento investindo dinheiro que havia ganho em uma migração anterior, além de economias feitas já na serra gaúcha.
— Comemos muito feijão para não gastar — diz ela.
Para Maria, empreender era o meio de fazer algo que gosta e, ao mesmo tempo, ter seus horários para cuidar da filha pequena. Em março de 2020, ela foi à prefeitura, encaminhou os trâmites burocráticos e formalizou a Bom pra Cachorro.
— Quando começamos, veio a pandemia. Foi muito ruim — recorda.
Preocupada com o futuro dos negócios, ela foi ao Centro de Atendimento ao Migrante para buscar aconselhamento. Lá foi instruída a procurar o curso online de empreendedorismo oferecido pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma das agências da ONU para atuar nos deslocamentos humanos.
— Me ajudou muito a entender administração, finanças, vendas, marketing digital e também como calcular o preço dos produtos. Tive muita informação — diz Maria sobre o curso de empreendedorismo da OIM.
Ao final, ela recebeu um capital inicial de R$ 500, investido na compra de uma máquina de tosa para acabamentos e em outras ferramentas úteis na pet shop. O programa da OIM, batizado Oportunidades Integração no Brasil, oferece aos venezuelanos mentoria para empreendedorismo, capacitação laboral, acesso a vagas de emprego, informação sobre direitos e organização de documentos para a regularização da permanência no país. De março a dezembro de 2020, mais de 600 imigrantes fizeram o curso de empreendedorismo no Rio Grande do Sul. No Brasil inteiro, foram 4.086 capacitados, todos com direito ao chamado “capital semente” variável entre R$ 500 e R$ 2,5 mil.
O migrante traz experiência de inovação e, dentro disso, ele consegue desenvolver uma empresa
IURQUI PINHEIRO
Coordenador do escritório de Porto Alegre da OIM
O coordenador do escritório de Porto Alegre da OIM, Iurqui Pinheiro, afirma que cerca de 70% dos formados seguem atuando como empreendedores. Para ele, o negócio próprio deverá tornar-se uma das marcas do fluxo venezuelano.
— O migrante traz experiência de inovação e, dentro disso, ele consegue desenvolver uma empresa. Isso gera renda para si e traz a criação de empregos para outros migrantes e até para brasileiros. Eles pagam os impostos. Essa é uma das ideias do programa, que eles possam contribuir e empregar — avalia Pinheiro.
A inserção no mercado de trabalho, em empregos formais, também é parte dos objetivos da política da OIM. Desde outubro de 2020, cerca de mil venezuelanos assumiram postos no RS.
— O Rio Grande do Sul foi o Estado que apresentou os maiores índices de empregabilidade dentro do nosso projeto. Isso se dá muito pela retomada da economia regional. Percebemos interesse dos municípios do Interior nas contratações. Em alguns locais, falta mão de obra — diz Pinheiro.
Ele afirma que as cidades para onde os venezuelanos mais estão sendo chamados a assumir empregos são Caxias do Sul, Erechim e Passo Fundo, sobretudo na indústria, na metalurgia e no comércio. Parte das empresas parceiras da OIM, diz Pinheiro, ajuda na mudança dos migrantes e chega a pagar os primeiros meses de aluguel, até que o novo funcionário esteja estabilizado financeiramente.
Apesar de Maria já ter passado por um episódio em que foi injustamente colocada sob suspeita e forçada a se deixar revistar em um supermercado, a sua família não quer mais sair de Caxias do Sul. Os pais do marido dela, Axel, também já vieram da Venezuela para morar na Serra. E eles estabeleceram uma meta audaciosa: juntar dinheiro para adquirir a casa própria na cidade.
Regularizações estão pendentes na PF
Com a chegada da pandemia de coronavírus, o governo federal editou portaria em 17 de março de 2020 para fechar a fronteira terrestre com a Venezuela. Apesar da vedação, os migrantes seguiram rumando em direção ao Brasil para escapar da crise do país natal. O resultado disso é um drama atual: os venezuelanos que ingressaram no país a partir do fechamento terrestre da fronteira não podiam ser documentados e regularizados pela Polícia Federal. Isso os levou a ficar sem o documento temporário de permanência e, pior, sem possibilidade de emitir a carteira de trabalho. Para o imigrante que vem ao Brasil em busca de trabalho, é uma situação caótica. Somente em 23 de junho de 2021, uma nova portaria do governo federal autorizou que passassem a ser regularizados pela Polícia Federal os venezuelanos que, por um ano e três meses, furaram o fechamento da fronteira. Existe uma demanda reprimida pela regularização que as autoridades, hoje, não conseguem quantificar.
“O problema era que, diante da impossibilidade de se fazer a regularização migratória, os venezuelanos acolhidos naquele período não podiam ser interiorizados. Em consequência, os abrigos e alojamentos da Operação Acolhida estavam com elevados índices de ocupação e houve a necessidade de abrir novos abrigos, para acolher esse público, tudo dentro do previsto no plano de contingência da operação. Essa situação provocava o aumento da pressão sobre o sistema de saúde e outros serviços em Roraima, à semelhança do que ocorreu no início da crise, em 2018. (...) Para se ter uma ideia, de 15 de janeiro a junho deste ano, a Operação Acolhida fez 10.840 entrevistas com venezuelanos que estavam indocumentados”, afirmou, em nota, a Casa Civil da Presidência da República, pasta responsável pela coordenação da Operação Acolhida.
Na Superintendência da Polícia Federal de Porto Alegre, também é desconhecido o contingente de venezuelanos que estão com a regularização pendente. O certo é que a demanda é alta. Por isso, a Delegacia de Polícia de Imigração, sob comando do delegado Eduardo Gonzalez Tavares, ampliou o horário de atendimento. Agora, as portas estão abertas das 7h às 19h. A PF também está finalizando um acordo de cooperação técnica com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) para melhorar a assertividade do atendimento aos venezuelanos. O objetivo é que a OIM coloque pessoas experientes no tema para auxiliar os imigrantes com a organização de todos os documentos que eles precisam apresentar no guichê da PF.
— Um dos problemas que temos hoje é o da documentação. Muitos vêm se regularizar com coisas faltando. Aí acaba ocupando o espaço da agenda e precisa retornar dias depois para trazer o que faltou. A média de 40% dos imigrantes têm de retornar por alguma carência nos papéis. A documentação completa reunida com auxílio da OIM vai ajudar muito no atendimento — diz o agente de polícia Dagoberto Lucas Barreto, do Núcleo de Registro de Estrangeiros, com 35 anos de experiência no setor de imigração da PF.
Apesar de a última portaria federal ter liberado a regularização dos venezuelanos, a fronteira terrestre do Brasil com o país segue fechada.
Veja números da Operação Acolhida
Ação é responsável por receber, alojar temporariamente e interiorizar pelo Brasil os imigrantes venezuelanos:
- De abril de 2018 a julho de 2021, foram interiorizados 56.272 venezuelanos pela Operação Acolhida
- Estados que mais receberam migrantes venezuelanos interiorizados: Paraná (9.407), São Paulo (8.451), Rio Grande do Sul (7.796), Amazonas (5.031) e Mato Grosso do Sul (3.739)
- Municípios que mais receberam migrantes venezuelanos interiorizados: Manaus (4.990), Curitiba (3.852), São Paulo (3.395), Dourados (2.730) e Porto Alegre (1.979)
- Conforme dados oficiais de 18 de agosto, fornecidos pela Casa Civil da Presidência da República, estão morando em abrigos da Operação Acolhida 6.993 venezuelanos. Outros 3.155 imigrantes da mesma nacionalidade estão residindo temporariamente em alojamentos
- Diariamente, a Operação Acolhida fornece cerca de 34 mil refeições aos venezuelanos que estão nos abrigos e alojamentos
- A Casa Civil projeta interiorizar mais de 2,5 mil venezuelanos por mês no segundo semestre de 2021
- Além da Operação Acolhida, há um contingente incalculado de venezuelanos que ingressou e deslocou-se no Brasil por meios próprios, muitas vezes para se reunir com familiares que já estavam estabelecidos por aqui. Fatores como esse levam profissionais da assistência migratória a estimar que o fluxo venezuelano no Brasil já está em vias de superar o haitiano.