O artesão venezuelano Nelson Yegrez, sua esposa e os três filhos dividiam uma pequena casa de dois quartos e um banheiro com outras duas famílias de migrantes no bairro Mathias Velho, em Canoas. Yegrez, que entrava com R$ 600 no rateio mensal do aluguel, estava insatisfeito com a falta de privacidade, sobretudo para as duas filhas meninas, de 14 e oito anos. Resolveu mudar-se para a zona rural canoense.
No bairro Mato Grande, reside atualmente apenas com os familiares e encontrou a privacidade que desejava, mas, em contrapartida, distanciou-se da área central da cidade. Tem dificuldade para levar os filhos à escola ou ir ao mercado. Pagar o aluguel, em qualquer situação, é um desafio vencido todo o mês com o suor dos bicos em jardinaria e pintura.
Com o sonho de superar as dificuldades de moradia e adquirir a casa própria no Brasil, os Yegrez juntaram-se a outras 35 famílias de latino-americanos que fundaram, em Porto Alegre, a Cooperativa Habitacional Migrantes do Sul. É uma iniciativa de perfil inédito na Capital gaúcha.
— Vejo a cooperativa como uma grande oportunidade. Nossa decisão é de ficar aqui, gostamos muito, e queremos fazer parte da família brasileira — conta Yegrez.
A organização reúne ampla maioria de venezuelanos, que intensificaram sua vinda ao Brasil a partir de 2017, fugindo da crise econômica e política que aflige o país caribenho. Somente a Operação Acolhida, que ajudou migrantes que cruzaram a fronteira brasileira a deixar o Estado de Roraima, enviou 6.850 venezuelanos ao Rio Grande do Sul até fevereiro de 2021. É o terceiro Estado que mais recebeu migrantes desta nacionalidade em todo o país.
Entre os fundadores da cooperativa, também há peruanos, cubanos, um equatoriano, um boliviano e até três famílias brasileiras, aceitas pelo estatuto da organização.
Depois de meses aguardando os trâmites burocráticos, a organização obteve a regularização do seu Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) no dia 14 de abril. Com os documentos em mãos, a junta diretiva iniciará na semana que vem uma peregrinação por órgãos públicos, privados e filantrópicos em busca de auxílio para engrenar o sonho de construir moradias populares.
Uma das agendas já confirmadas ocorrerá na próxima terça-feira (20), com o secretário de Habitação e Regularização Fundiária de Porto Alegre, André Machado. A intenção dos cooperados é ingressar no cadastro do Departamento Municipal de Habitação (Demhab), vinculado à secretaria, em busca de políticas públicas de moradia.
Concluído o processo de legalização, o objetivo é expandir o número de participantes da iniciativa para até 300 famílias. Até agora, as contribuições mensais eram de apenas R$ 20, o que foi usado para contratar um contador e para quitar taxas. Na nova fase, para acalentar o desejo da moradia popular, as parcelas subirão para R$ 100 a cada 30 dias.
— Vamos verificar como podem nos ajudar. Eu sempre digo que queremos conseguir as coisas com os nossos esforços. Não queremos a todo instante estar recebendo uma sacola de comida. Queremos ter trabalho e construir nossas casas. Não queremos ser uma carga para o povo do Brasil — afirma Henry Pérez, 55 anos, presidente da Cooperativa Habitacional Migrantes do Sul.
Contra o desemprego
Pérez, de nacionalidade venezuelana-colombiana, explica que a organização está aberta a todas as possibilidades: receber doação de terreno e construir casas ou apartamentos com recursos próprios, reformar um prédio abandonado que seja repassado pelo poder público ou comprar todos os bens envolvidos na empreitada, da área ao material de construção, pelo caixa da cooperativa.
Não queremos a todo instante estar recebendo uma sacola de comida. Queremos ter trabalho e construir nossas casas.
HENRY PÉREZ
Presidente da Cooperativa Habitacional Migrantes do Sul
Outra decisão é que os próprios cooperados deverão trabalhar na futura obra. Isso permitirá que eles remunerem os compatriotas que estão desempregados. O estatuto da entidade prevê que podem ser recebidas doações de entes privados na perseguição do objetivo de construir moradia popular. Isso não inclui somente dinheiro, mas prestação de serviços, como a elaboração de projetos de engenharia.
— O migrante, quando chega a outro país, costuma não ter nada. E uma das coisas mais importantes e mais difíceis de se conseguir é a moradia. A maioria vive de aluguel e muitos estão sem trabalho. Acabam indo morar muitas pessoas na mesma casa. Queremos resolver isso — diz Pérez, residente do bairro Floresta, em Porto Alegre, onde trabalha como marceneiro em um atelier de artes.
A fundação da cooperativa, com emissão de CNPJ, é a concretização de um antigo sonho do boliviano naturalizado brasileiro Mario Fuentes, que vive há mais de 30 anos em Porto Alegre e casou-se com uma gaúcha. Desde 2015 ele vinha tentando mobilizar outros migrantes a criarem a organização. Tentou com haitianos e senegaleses, mas não deu certo. Ele conta que alguns ficavam com muitas dúvidas, não entendiam o funcionamento da estrutura, e outros demonstravam ceticismo diante da ideia de reunir migrantes que depositariam seus parcos recursos em uma conta para, depois, construírem casas juntos.
Fuentes resolveu, na derradeira esperança, tentar emplacar a ideia com latino-americanos. Finalmente deu certo, sobretudo pelo emparceiramento com os venezuelanos, que abraçaram a causa após uma reunião na Paróquia Nossa Senhora da Pompeia, no centro de Porto Alegre, em fevereiro de 2020. Para superar burocracias estatais e jurídicas, também ajudaram os conselhos do ex-goleiro da dupla Gre-Nal Ademir Maria, servidor do Demhab desde 2011. Depois de tanta espera, Fuentes, 58 anos, trabalha pelo ato final: tirar o projeto do campo das ideias e produzir casa própria.
— Todo migrante vem com seus sonhos, mas acaba caindo na realidade do difícil acesso à moradia. Temos situações muito tristes em grupos familiares. São 10, 12 ou 15 pessoas dentro de uma casa. E, por vezes, mesmo nesses grupos grandes, só uma pessoa está empregada. Queremos tirar o migrante dessa precariedade. Moradia é parte da dignidade da pessoa — idealiza Fuentes.
Secretário sinaliza com ingresso em programa de venda de áreas públicas
Secretário de Habitação e Regularização Fundiária, André Machado já tomou conhecimento da fundação da Cooperativa Habitacional Migrantes do Sul antes mesmo de se reunir com os seus líderes na próxima terça-feira. Ele sinaliza com a hipótese de incluir a agremiação em um programa que prevê a venda de terrenos de propriedade da prefeitura de Porto Alegre para cooperativas autogestionárias, que irão construir as moradias por sua conta. O município entende que, diante da escassez de recursos, é uma forma de prestar algum auxílio aos programas de moradia popular.
O secretário diz que será enviado à Câmara de Vereadores um projeto de lei requerendo autorização para que a prefeitura negocie as áreas com as cooperativas habitacionais, tendo a Caixa Econômica Federal como financiadora. Ou seja, o banco pagaria à prefeitura pelo terreno, e receberia o retorno em parcelas mensais dos cooperados. Em análise hipotética, Machado disse que, tratando-se de uma cooperativa que poderá atingir centenas de membros, é plausível trabalhar com valores modestos de prestações, abaixo dos R$ 100.
— Relacionamos mais de 20 terrenos para esse projeto. Queremos lançar o projeto-piloto com seis áreas — diz Machado.
Ele salienta que, antes do envio à Câmara, a política pública ainda será analisada pelo prefeito Sebastião Melo. O secretário diz que, por ora, não se vislumbra a hipótese de doação dos terrenos.
— Temos 50 cooperativas hoje ativas no Demhab, das quais 10 demonstraram interesse nesse programa. Neste momento, não temos um programa subsidiado. Não há recurso. Mas tudo pode ser discutido. Depende muito da Câmara também. Daqui a pouco, os vereadores podem aprovar com a previsão de um desconto de 50% nos terrenos — conjecturou Machado.
Coordenador do escritório de Porto Alegre da Organização Internacional para as Migrações (OIM), uma das agências da ONU para os deslocamentos humanos, Iurqui Pinheiro avaliou a criação da cooperativa como “positiva”. A OIM desenvolve políticas de acolhida, de inserção no mercado de trabalho e de desenvolvimento pessoal dos migrantes em todo o mundo.
— Uma vez recebido um pedido de apoio, encaminharei imediatamente para a sede da OIM em Brasília para verificar se há possibilidade de enquadramento em algum programa de auxílio — diz Pinheiro, que atuou junto aos migrantes venezuelanos na Operação Acolhida, em Pacaraima (RR).