Ainda jovem aos 42 anos, Iurqui Pinheiro já teve ao menos uma grande experiência na trajetória de quatro anos como funcionário da Organização das Nações Unidas (ONU): entre março de 2019 e o mesmo mês de 2020, ele coordenou o escritório da Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência da ONU para os deslocamentos humanos, em Pacaraima (RR), por onde até mil venezuelanos ingressavam diariamente no Brasil. Viu de perto o desespero de quem fugia em busca de uma vida melhor e trabalhou ao lado de uma força-tarefa integrada por organismos do governo federal e da sociedade civil para fazer a recepção dos imigrantes, com a Operação Acolhida. Gaúcho de nascimento, com formação em Direito, Relações Internacionais e Diplomacia, Pinheiro regressou ao Rio Grande do Sul há 10 meses para coordenar o escritório da OIM em Porto Alegre. Nesta entrevista, conta o motivo de a ONU ter instalado uma unidade no sul do Brasil e lista os desafios para auxiliar as comunidades de migrantes venezuelanos, haitianos e senegaleses.
O escritório da OIM em Porto Alegre completa um ano em março. Por que a escolha pela capital gaúcha?
Porque o Rio Grande do Sul é um Estado que já tem fluxo migratório há muito tempo. No fluxo atual, de venezuelanos, haitianos e senegaleses, o Estado é um dos mais procurados do país. Na Operação Acolhida, o Rio Grande do Sul é o terceiro maior receptor de imigrantes venezuelanos interiorizados, quase junto em números com São Paulo e Paraná, os dois primeiros. É claro que os imigrantes procuram Estados por conta própria, também. A ideia da OIM é estar nesses locais para dar maior suporte, principalmente pensando na integração econômica. A interiorização dos venezuelanos foi extremamente importante. Lá em Roraima havia gargalos, tanto na questão de estrutura e também por ser um Estado de difícil acesso, para entrar e sair. Boa parte deles não conseguia sair de Roraima. A sobrecarga e os conflitos que existiam na região foram desafogados pela Operação Acolhida. A OIM entende que interiorizar é importante, mas o fundamental é fazer a integração econômica.
Quais os principais desafios do escritório da OIM em Porto Alegre e no que ele pode auxiliar em relação às políticas para migrantes?
Podemos auxiliar muito a sociedade civil, na rede local já existente que atua com migração no Rio Grande do Sul. O Estado tem uma rede que se destaca. Temos problemas, mas, comparado a outras regiões do Brasil, o Estado tem uma rede muito forte, formada por instituições da sociedade civil. O escritório se soma para auxiliar. Junto ao poder público, temos acordo de cooperação assinado com o governo estadual, com a Secretaria da Saúde, e neste período de pandemia temos realizado ações em parceria. E estamos trabalhando um acordo de cooperação com a prefeitura. Buscamos interlocução com o setor privado também. O programa Oportunidades Integração no Brasil é realizado junto ao setor privado, em parceria, porque a finalidade dele é a inserção laboral dos migrantes.
O principal objetivo do programa é encontrar emprego aos migrantes?
A maioria dos migrantes tem boa qualificação, inclusive até maior do que a dos brasileiros, sobretudo os que chegaram no primeiro momento. Isso vale para venezuelanos, haitianos. Uma vez falei com um migrante do Haiti que era matemático, tinha prêmio internacional, e aqui ele era ajudante de estoquista. Nada contra esse trabalho, mas ele tinha conhecimento amplo em matemática, poderia ser melhor utilizado. A inserção laboral não é fácil, e o projeto visa a auxiliar. Temos instituições parceiras e ofertamos capacitação em português, em diversos níveis, e cursos em áreas técnicas e voltados a formar empreendedores. Em 2020, 500 pessoas participaram de capacitação de empreendedorismo, para pequenos negócios legais, contribuindo com impostos. Elas poderão empregar outros imigrantes e também brasileiros nos seus pequenos negócios. O projeto também tem um direcionamento forte para a inserção laboral. Entre outubro e dezembro, quase 400 migrantes foram empregados formalmente no Rio Grande do Sul. A ideia do escritório é abranger o Estado inteiro. E temos um projeto importante que é um auxílio fornecido quando se tem algum caso grave. Auxiliamos os migrantes que estavam em situação mais vulnerável por causa da pandemia e também de uma enchente que ocorreu em Lajeado. É um auxílio financeiro para situações de extrema vulnerabilidade. O migrante fica mais resguardado, e isso auxilia o Estado. É um cartão que ele pode usar em compras. Alcançamos mais de 700 famílias com esse programa.
Há certa confusão na sociedade a respeito da OIM e do Alto-comissariado para os Refugiados (Acnur), ambas agências da ONU. O que as diferencia e o que as aproxima?
A OIM atua no escopo total da migração. Qualquer deslocamento humano que ocorra está dentro da imigração. E, dentro das várias formas de migrar, estão os refugiados. O Acnur trabalha especificamente com os casos de refúgio. Refugiados são pessoas que se enquadram em questões de perseguição política, religiosa e grave afronta aos direitos humanos. O que aproxima OIM e Acnur é que ambas atuam no deslocamento humano, em suas especialidades. E muitas ações são desenvolvidas em parceria pelas duas agências.
O migrante agrega de forma produtiva, incrementa a economia. As pessoas que estão ingressando no país se alimentam, compram roupas e medicamentos, e isso gera reflexo e pagamento de imposto.
No Rio Grande do Sul, os migrantes mais recorrentes não são considerados refugiados, embora os venezuelanos possam se enquadrar nessa categoria, certo?
O número de solicitações de residência temporária no Brasil é maior do que o número de solicitações de refúgio. A maioria dos migrantes venezuelanos pede a residência temporária, e não refúgio. Claro que há muitos casos de solicitação de refúgio, principalmente no início. Eu diria que temos um misto de situações.
É possível afirmar que venezuelanos, haitianos e senegaleses são as nacionalidades com o maior número de migrantes vivendo em Porto Alegre e Região Metropolitana?
Sim, esses são os mais representativos atualmente. Apenas pelo programa federal, há 6 mil venezuelanos interiorizados no Rio Grande do Sul. Hoje, o maior fluxo no Brasil é o de venezuelanos.
Como foi a experiência de coordenar o escritório da OIM em Pacaraima?
Foi um grande desafio. Junto à questão da Síria, era o escritório para o qual o mundo estava com os olhos voltados. Era grande a responsabilidade. O escritório exerce um trabalho fundamental, até na questão da sensibilidade com a população local. Há um acirramento que ocorre na região, é preciso sensibilidade para dialogar de forma tranquila com a população local, para que ela compreenda o trabalho que está sendo feito. Trata-se de uma dupla função: fazemos o acolhimento migratório, a regularização, a documentação, os cuidados com o tráfico de pessoas e com a exploração laboral e também precisamos de atenção para termos um diálogo tranquilo com a população local. Por dia, no fluxo forte, mil venezuelanos cruzavam a fronteira. No fluxo mais fraco, diariamente, eram no mínimo 500 pessoas. Houve dificuldade. Em alguns momentos, ocorreu acirramento por parte da população local, que não compreendia muito bem a entrada, foi tudo muito rápido. As pessoas levam um tempo para absorver isso. O trabalho que a OIM faz é de auxílio ao ordenamento da migração. Há quem pense que a agência atue somente em benefício do migrante que está chegando. Não. A agência se preocupa também com a sociedade que acolhe. A migração tem de ser benéfica para todos. No nosso entendimento, a migração ocorre com êxito quando a integração é bem realizada. Os migrantes trazem inovação. As empresas relatam que eles crescem muito na parte de inovação porque trazem novos olhares, novos jeitos de fazer as coisas. E também se percebe que os migrantes trabalham com afinco. Como fazem remessas para os seus familiares, eles aproveitam muito a oportunidade de trabalho e levam muito a sério. As empresas sempre passam informações positivas.
Na última eleição em Boa Vista (RR), candidatos a prefeito derrotados prometeram acabar com supostos privilégios de venezuelanos, apesar da miséria em que se encontravam. Como o avalia isso?
As pessoas que entram têm direitos tutelados pela nova lei de migração, de 2017. A lei garante o ingresso, o alcance universal aos serviços básicos como saúde, educação e trabalho. Na verdade, não são privilégios. É simplesmente o cumprimento do que a legislação determina, tanto a lei nacional quanto os acordos internacionais. São direitos e deveres. Eles também são informados sobre seus deveres.
A chegada de migrantes pode repor algumas vagas que se abriram sem prejudicar o brasileiro no emprego. Muitas vezes por desconhecimento são geradas situações de xenofobia e agressividade.
Situações extremas como as de Pacaraima podem impulsionar xenofobia, violência e exploração humana?
Boa parte dos casos que verificamos de xenofobia ou de violência ocorria por falta de informação da população. Entendiam que os migrantes estavam ali com algum privilégio ou para acessar vagas de emprego de brasileiros. Mas isso não é uma realidade. Saíram do Brasil, nos últimos anos, para migrar em direção a outros países, o dobro de migrantes que vieram ao Brasil. Muitos brasileiros vão buscar oportunidades em outros países e outros migrantes ingressam no Brasil, mas em número bem menor. E boa parte dessas vagas de emprego estavam ociosas e não eram alcançadas por pessoas do Brasil. A chegada de migrantes pode repor algumas vagas que se abriram sem prejudicar o brasileiro no emprego. Muitas vezes por desconhecimento são geradas situações de xenofobia e agressividade. Qualquer local em que se tenha muita gente, com necessidades específicas, aumenta a chance de exploração, mesmo para os brasileiros. A situação de vulnerabilidade de forma geral pode facilitar a exploração. É por isso que tínhamos muito cuidado em Pacaraima. A Operação Acolhida se tornou um modelo, a gente recebia muita gente da União Europeia, do Japão, comitivas de outros países avançados, e eles ficavam surpresos com os nossos serviços. A fronteira nunca esteve tão fortificada, era uma força-tarefa com Polícia Federal, Exército, Receita Federal, agências da ONU e sociedade civil, todos trabalhando pelo primeiro acolhimento e ordenamento da fronteira.
Para os haitianos, o Brasil deixou de ser tão atrativo como já foi entre 2011 e 2015. Passado o período inicial, parte deles migrou daqui para outros países, como o Chile. Essas migrações dentro de migrações são comuns nos processos?
Não é anormal que os migrantes cheguem em um país e, um tempo depois, migrem para outro próximo. Por vezes, são questões culturais, ou não se alcançou o esperado em questões de trabalho. E aí se deslocam um pouco mais adiante. No primeiro momento, quando os haitianos chegaram, não havia ainda um preparo tão grande para o acolhimento como se tem hoje. De 2017 em diante, o Brasil passou a ter mais estrutura para isso. Se a imigração dos haitianos tivesse ocorrido dentro dessa nova estrutura, seria mais fácil, e o deslocamento para outros países seria menor. Ainda assim, considero os haitianos um exemplo de migração que veio com o pensamento de permanecer. Boa parte deles permanece e muitos estão empregados de forma sólida.
Quais as maiores dificuldades para os migrantes em Porto Alegre e no Rio grande do Sul? A pandemia agravou o cenário em quais aspectos?
Uma dificuldade que se encontra em qualquer fluxo migratório é a barreira da língua. A inserção laboral é outra dificuldade. O ingresso no mercado de trabalho demora um pouco para ocorrer, e o migrante precisa se adaptar. Por isso a importância de o escritório da OIM estar aqui. Temos tido êxito com cinco projetos simultâneos no Estado. É o start para que os migrantes possam ter integração econômica serena e rápida.
Chama atenção a dificuldade na habitação. Eles não têm fiador, as imobiliárias não alugam, e resta buscar locação direta com proprietários em periferias. Um grupo de venezuelanos está tentando criar uma cooperativa habitacional em Porto Alegre. É uma alternativa viável?
A habitação é uma questão importante e que gera dificuldade. Percebemos que os migrantes, com muito esforço, conseguem alugar direto com os proprietários e se reúnem por vezes em duas famílias. É um fator sensível, acaba afetando a chegada e a integração. Sobre a cooperativa, entendo que toda forma de atuação coletiva acaba sendo mais robusta. E tem um fator importante de aproximar pessoas em situações semelhantes. Se a cooperativa não gerar um resultado específico na habitação, vai gerar outros reflexos positivos, como a proximidade e a união.
Há uma percepção de que os migrantes buscam se acomodar no mercado de trabalho de formas distintas. Os senegaleses, possivelmente os que menos receberam atenção em políticas públicas, estão vendendo produtos nas calçadas em Porto Alegre. Como avalia isso?
Os senegaleses, em geral, têm postura empreendedora. A questão de eles estarem informais talvez seja uma dificuldade inicial por desconhecimento das leis sobre como regularizar uma empresa. Percebe-se que eles buscam ação mais autônoma. Os venezuelanos também têm essa veia empreendedora. Claro que, para o empreendedorismo ocorrer, muitas vezes é preciso um apoio inicial. A pandemia mostrou algo interessante nesse sentido. Como lá por março e abril a inserção laboral estava mais difícil por causa da pandemia, a gente deu ênfase maior no início do nosso projeto ao empreendedorismo. E tivemos ótimos resultados. Os venezuelanos demonstraram grande interesse. É um clichê, mas a pandemia trouxe oportunidades. A migração, quando bem ordenada, pode gerar muitos benefícios para o país. O migrante agrega de forma produtiva, incrementa a economia. As pessoas que estão ingressando se alimentam, compram roupas e medicamentos, e isso gera reflexo e pagamento de imposto. Sem falar no aluguel de residência, que também gera reflexo na economia.
Os senegaleses, em geral, têm postura empreendedora. A questão de estarem informais talvez seja uma dificuldade inicial. Percebe-se que eles buscam ação mais autônoma. Os venezuelanos também têm essa veia empreendedora. Claro que muitas vezes é preciso um apoio inicial.
A interiorização de venezuelanos pelo Brasil, via Operação Acolhida, começou no governo de Michel Temer e teve continuidade sob a presidência de Jair Bolsonaro. Como avalia a atuação do governo atual, considerando seu discurso reticente às migrações e à própria ONU?
Posso falar pela experiência que tive na fronteira. O governo federal, desde o período do Temer até a atualidade, atuou de forma importante no auxílio à migração, principalmente no fluxo decorrente da Venezuela. Os governos mantiveram uma linha, não houve mudanças radicais, independentemente de discursos que possam ser realizados. O governo brasileiro tem demonstrado apoio, observando a legislação e o cumprimento de acordos.
O que achou do filme Sérgio, de Greg Barker, produção da Netflix sobre Sérgio Vieira de Mello, histórico diplomata brasileiro, alto comissário das Nações Unidas para Direitos Humanos, morto em atentado à sede da ONU em Bagdá, no Iraque, em 2003?
O filme trata de algo muito relevante, que é o trabalho do Sérgio Vieira de Mello, mas mostra muito pouco do que ele foi. Fica muito focado na vida pessoal dele, a história com a Carolina (Larriera, com quem trabalhou na ONU) e o romance que aconteceu. Ele fez um trabalho tão relevante, um grande negociador, um homem de fácil articulação entre os países, representando as Nações Unidas. Ele foi uma figura fundamental, e o filme não aprofunda na atuação profissional dele. Mas, com certeza, foi muito bom poder ver um filme tratando dessa história.