Filósofo, doutor em Educação e professor da área de Filosofia da Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o paulista Silvio Gallo, 57 anos, pesquisa temas como o ensino da filosofia e suas relações com a cidadania. Também pedagogo é autor de livros como Pedagogia do Risco (1995) e Anarquismo (2000) e por duas vezes recebeu o cobiçado prêmio Jabuti: em 1998, pela organização de Ética e Cidadania – Caminhos da Filosofia, e em 2013 pela obra Metodologia do Ensino de Filosofia. Para o especialista, o Brasil vive hoje sob princípios fundamentalistas que se espalharam da religião para a política, o que coloca em risco a democracia entendida de forma mais abrangente. Para Gallo, a educação é um caminho para garantir a liberdade individual – mas o filósofo defende um modelo de ensino menos voltado a avaliações internacionais e mais focado em necessidades de cada comunidade. Confira a entrevista concedida por telefone a GZH.
O senhor recebeu um prêmio Jabuti nos anos 1990 como organizador de um livro sobre ética e cidadania. Desde então, avançamos ou retrocedemos nessas áreas?
Gostaria muito de responder que avançamos, mas acho que retrocedemos. O livro foi produzido logo depois da publicação da Lei de Diretrizes e Bases de 1996 para o Ensino Médio. A LDB enfatizava esses dois campos, ética e cidadania, e entendíamos as aulas de filosofia como um espaço privilegiado para trabalhá-los. Era um debate que estava forte no país desde a época do impeachment de Fernando Collor (1992). Nosso trabalho, no livro, era explorar essas questões na perspectiva da filosofia. Tivemos avanços importantes em vários desses campos nos anos 1990 e 2000, mas vivemos agora um momento de retrocesso.
Que tipo de retrocesso?
Vivemos uma crise de valores principalmente por conta de um movimento fundamentalista de moralização que se afasta da perspectiva da ética. A ética, pelo viés da filosofia, consiste em uma ação humana refletida com base em valores livremente escolhidos e aceitos pelas pessoas. O sujeito precisa ter clareza e liberdade em suas escolhas e responsabilidade por seus atos. Mas temos visto, nos últimos anos, o crescimento de uma perspectiva fundamentalista religiosa, especialmente cristã e ligada às igrejas neopentecostais, que impõem um quadro de valores que as pessoas devem seguir não porque vão refletir sobre aquilo, mas porque estão sob o comando de alguém. No caso, de um pastor.
Esse comando já não se estende à esfera política?
Sim, esse é o ponto ao qual queria chegar. Isso vai se constituindo também em um fundamentalismo político. Ocorre que, nas últimas décadas, tínhamos uma presença marcante da Igreja Católica nas periferias, muitas vezes marcada pela teologia da libertação com comunidades eclesiais de base fortes e movimentos cristãos católicos ocupando áreas de periféricas...
Mas que passaram a enfrentar a oposição do então Papa João Paulo II.
Isso. Aí temos esse processo de uma percepção (negativa) do Vaticano sobre a teologia da libertação na América Latina, levada a cabo pelo então cardeal Ratzinger, que viria a se tornar Papa depois de João Paulo II, e foi responsável por essa luta contra a teologia da libertação. Mas o que eu queria frisar é que tínhamos essa participação da Igreja Católica que garantia um certo nível de assistencialismo social e político. Com o retrocesso católico nas periferias, abriu-se um espaço ocupado pelas igrejas neopentecostais. Diria que, hoje, as periferias brasileiras estão, em larga medida, dominadas territorial e politicamente por neopentecostais que têm um viés muito diferente daquele da teoria da libertação.
Qual a principal diferença?
Que não pareça que estou defendendo a teologia da libertação. Pelo contrário, sou crítico. Mas, em termos históricos, precisamos compreender esses movimentos. O afastamento da Igreja Católica das periferias teve efeitos negativos. Não se afastou completamente, alguns teimosos permaneceram. Mas, com o predomínio dos neopentecostais, temos uma mudança importante por conta da leitura religiosa que essas igrejas fazem, da forma de evangelização que usam e como se aproveitam da pobreza para disseminar os seus valores morais mais conservadores. Por exemplo: na Igreja Católica, vimos o Papa Francisco tentando rever algumas posições em relação aos homossexuais e à participação das mulheres. Nas igrejas neopentecostais, temos um discurso contrário. E isso se dissemina na população sobretudo pelo trabalho dos pastores, que vão conclamar sua comunidade a viver de acordo com esses valores afirmando, por exemplo, que determinadas questões não são aceitas pela Bíblia ou pela palavra de Deus.
Temos visto, nos últimos anos, o crescimento de uma perspectiva fundamentalista religiosa, especialmente cristã e ligada às igrejas neopentecostais, que impõem um quadro de valores que as pessoas devem seguir não porque vão refletir sobre aquilo, mas porque estão sob o comando de alguém.
O senhor vê nisso uma ameaça à democracia?
Sem dúvida. Esses movimentos há muito tempo começaram a se colocar em cargos políticos. Foram se criando bancadas evangélicas em Câmaras Municipais, Assembleias estaduais e no Congresso e pouco a pouco fomos vendo as pessoas comprometidas com esse movimento assumindo cargos no Executivo. Não são poucos prefeitos, e alguns governadores, que são pastores ou que se ligam a essas denominações por perceberem a força delas para somar votos. Levam para a política o princípio fundamentalista do campo religioso. Vivemos hoje um fundamentalismo político no Brasil. Isso é um risco para a democracia entendida a partir do filósofo francês Jacques Rancière. Ele diz que a democracia, mais do que a arte do consenso, como estamos acostumados a pensar, é a arte do dissenso, a possibilidade de construir projetos comuns vivendo em meio às diferenças. O papel da democracia é o de fomentar as diferenças, não o de transformar todos em iguais. Com o fundamentalismo religioso, vemos justamente o contrário: a perspectiva é de impor a todos a mesma visão. Se você não se converte, vira inimigo.
Como o senhor situa o presidente Jair Bolsonaro nesse cenário?
Minha impressão é de que é um oportunista que se vale desses discursos para se constituir como uma alternativa viável de poder. Não tenho dúvida de que Bolsonaro ganhou a eleição de 2018 porque arregimentou uma camada da população fazendo esse discurso de natureza religiosa, mas não vejo nele um comprometimento com esses valores. É mais um alinhamento para arregimentar votos. O governo é mais comprometido com a lógica econômica neoliberal que quer desmontar programas de auxílio social e usa a pauta neoconservadora para encaminhar pautas como a desregulamentação das políticas de defesa do meio ambiente. Como você consegue desregulamentar coisas que terão impactos sociais e políticos fortes mantendo apoio popular? Você implementa essa pauta neoconservadora amparada por esse fundamentalismo religioso.
A democracia, mais do que a arte do consenso, como estamos acostumados a pensar, é a arte do dissenso, a possibilidade de construir projetos comuns vivendo em meio às diferenças. O papel da democracia é o de fomentar as diferenças, não o de transformar todos em iguais. Com o fundamentalismo religioso, vemos o contrário: a perspectiva é de impor a todos a mesma visão. Se você não se converte, vira inimigo.
Qual o papel da educação no cenário atual?
Tem uma série de papéis. Para construir uma sociedade democrática, você precisa de sujeitos capazes de agir com autonomia. Com a força do neocoservadorismo, começamos a encontrar empecilhos em relação a essa autonomização do sujeito na medida em que você é muito mais chamado a obedecer determinados princípios morais do que a pensar por si mesmo, tomar decisões e ser responsável por elas. Você se deixa guiar por uma fala de autoridade, seja religiosa ou política. Nós, professores de filosofia, participamos do processo de reivindicação de uma maior presença da filosofia na escola brasileira. Em 2008, conseguimos isso com a lei que introduziu a filosofia e a sociologia como disciplinas obrigatórias...
Mas que depois voltaram a perder espaço.
Exato, em 2018 isso se perdeu, ou pelo menos se diluiu. A importância da filosofia é justamente que, por meio dela, podemos contribuir para formar esses sujeitos autônomos dos quais eu falava, que são capazes de pensar por si mesmos, de ter as suas próprias ideias, uma formação razoavelmente sólida no campo do pensamento e da cultura e, com base nesse conhecimento, tomar suas próprias decisões e de se responsabilizar por elas.
O foco, hoje, é formar o aluno para o mercado de trabalho e a geração de renda. É possível conciliar esse viés com o da formação humanista na educação básica?
Sem dúvida. Se pensamos na LDB de 1996, que é a lei que nos rege, embora muita gente do governo se esqueça de que temos todo um ordenamento jurídico, há dois princípios fundamentais. Um é a formação para a cidadania, o outro é a formação para o mercado de trabalho. As duas coisas precisam estar integradas, caso contrário, você vai ter apenas uma preparação técnica de mão de obra. Esse não é o papel da escola. Um dos equívocos do governo federal é focar no mercado de trabalho, deixando de lado a formação humanística.
O problema é que os indicadores disponíveis apontam a má qualidade da educação brasileira. Qual o caminho para contemplar a formação humanística mas melhorar o aproveitamento do aprendizado?
As análises que temos são complicadas porque, no campo da educação, temos nos rendido a parâmetros internacionais para avaliar o aproveitamento. Dizer que o Brasil não aparece bem em provas internacionais, para mim, não é uma coisa complicada. Quando o Fernando Henrique assumiu a presidência, ele dizia justamente que tínhamos de melhorar a posição do Brasil nas avaliações internacionais. Para isso, nomeou como ministro da Educação o Paulo Renato Souza, ex-reitor da Unicamp, um economista. Ele veio do Banco Interamericano de Desenvolvimento, um dos organismos internacionais que determinam esses parâmetros, e geria a educação como questão de economia. Os governos posteriores não deixaram de seguir esse viés, e os vários sistemas de avaliação da educação no Brasil miram nesse patamar. A partir dessa radiografia é que dizemos que a educação brasileira não é boa. Mas se fazem coisas muito interessantes em muitos lugares do Brasil.
Quando falo em ensino público não estatal a partir de alguns princípios anarquistas, é justamente para fazer o contraponto de que, desde o século 19, os anarquistas pensam a educação sempre à margem do Estado, entendendo que o Estado nunca vai ser capaz de oferecer uma educação que os trabalhadores e seus filhos reivindicam. Quando a gente fala de sistema público de ensino, não precisa pensar o público como sendo estatal.
Mas esses bons exemplos não são a exceção? O senhor tem algum indicador que substitua as avaliações padronizadas que mostre outro cenário?
Não tenho. Justamente porque acho que qualquer indicador que a gente coloque como parâmetro geral vai fazer o mesmo que fazem esses indicadores internacionais. O nosso equívoco é mirar no lugar errado quando se fala em avaliações externas de ensino.
Mas como gerir grandes redes com milhares ou milhões de alunos sem parâmetros comuns?
Aí está o problema. Deveríamos pensar em gerir redes menores.
Isso tem relação com ideias que o senhor defende na educação, como ensino público não estatal ou de princípios anarquistas?
Tem e não tem (risos). Quando falo em ensino público não estatal a partir de alguns princípios anarquistas, é justamente para fazer o contraponto de que, desde o século 19, os anarquistas pensam a educação sempre à margem do Estado, entendendo que o Estado nunca vai ser capaz de oferecer uma educação que os trabalhadores e seus filhos reivindicam. Quando a gente fala de sistema público de ensino, não precisa pensar o público como sendo estatal.
Na prática, como funcionaria um novo modelo de gestão com base nessas ideias?
Não sei se falaria em novo modelo. Precisamos buscar possibilidades de abertura para que cada comunidade possa fazer do seu jeito. Se a gente cria um modelo, tende a espalhá-lo para as várias comunidades.
O senhor tem alguma referência de onde isso foi feito com bons resultados?
Temos redes municipais que muitas vezes constroem situações interessantes, ou em algumas escolas da rede. Tivemos produções importantes nas décadas de 1980 e 1990 na rede estadual do Paraná, com um trabalho de gestão diferenciada. Uma época, o professor Demerval Saviani foi a principal referência teórica usada pelo Paraná com a perspectiva da chamada pedagogia histórico-crítica. Há determinados momentos em que uma rede, seja municipal ou estadual, é gerida de acordo com determinados princípios e pode produzir um efeito local interessante. Eu preferiria pensar em redes cada vez menos abrangentes. Por exemplo, pensaria num determinado município, a depender do tamanho, em que a própria rede municipal fosse desmembrada em regiões com autonomia para pensar seus planos de acordo com as necessidades das comunidades locais.
Isso não poderia, por outro lado, estimular desigualdades? Uma rede mais abrangente pode direcionar mais recursos para onde é mais necessário, por exemplo...
Esse é o grande problema que temos para equacionar. Mas é importante que, em alguns momentos, a gente pense menos em desigualdade e mais em preservação das diferenças. Em nome de um certo igualitarismo, a gente tende a homogeneizar a rede de ensino. Sou defensor dessa distribuição mais equânime. Mas, em nome de fazer essa distribuição, acaba-se também apagando as diferenças regionais. Temos uma legislação federal que, em nome da unidade nacional, apaga diferenças regionais importantes. Não podemos olhar para Porto Alegre e Manaus da mesma forma. São realidades e culturas distintas. O ponto é de que forma conseguimos distribuir mais recursos onde precisa mais sem impor uma homogeneização pela qual os resultados em um lugar devem ser semelhantes aos de outro. A distribuição de recursos não deve ter como moeda de troca um mesmo aproveitamento.
Mas uma região com menos exigência do que outra não resultaria em desigualdade de oportunidades para os estudantes de cada uma delas?
O problema está na definição desses mínimos. No final das contas, não sabemos (quais devem ser). Alguém define parâmetros, e eles passam a ser aplicados de forma universal. Aí está o grande problema da educação de forma geral. Do meu ponto de vista, os estudantes sempre aprendem. O problema é que nós, educadores, não necessariamente sabemos o que eles aprendem. A gente se baseia na hipótese de que pode definir o que eles vão aprender, como e quando. Diz-se que isso está nas mãos do professor, mas, no meu ponto de vista, não está. Esse é o problema: a gente produzir uma equalização do que deve ser aprendido e em qual momento. Por isso falo contra esses parâmetros internacionais. Você define que um estudante com oito anos deve fazer certas operações matemáticas e aplica uma avaliação standard que serve para qualquer país no mundo porque quer compará-los. Aí diz que na Suécia atingem tal nível, e em Gana, tal nível, na França ou no Brasil, tal nível. Mas o que isso nos diz efetivamente? Se pensarmos que estamos formando o estudante de Gana para viver em Gana na sua realidade, por que o aproveitamento tem de ser comparado com o do estudante da Suécia?
Todos os governos do país, nos últimos 40 anos, trataram a educação como mercadoria. Por isso, não vejo muita perspectiva de sair desse modelo. Temos de construir alternativas.
Mas o estudante de Gana pode querer ir viver na Suíça. Isso não justifica a existência de padrões mínimos mais abrangentes?
Acho que não. Uma pessoa de Gana pode querer viver na Suíça, mas a questão é saber se ela vai ter condições de fazer isso.
A educação não é o caminho?
Não sei, sinceramente. Acho que isso passa por outras questões de natureza econômica que, nesse contexto, são mais importantes do que a educação. A pessoa que consegue esse tipo de mobilidade faz isso justamente a partir das diferenças que ela tem em relação aos demais. Por exemplo: alguém que sai de um país africano pobre para viver no chamado primeiro mundo vai ter valorizadas as qualidades que desenvolveu no seu contexto regional justamente por ser diferenciado. Não porque aprendeu a fazer as mesmas operações matemáticas da pessoa do outro país. O que capacita mais as pessoas é a habilidade de adaptação, e o sujeito que é educado para se inserir no seu contexto será também capaz de se inserir em outro.
O senhor vê espaço no Brasil hoje para uma discussão profunda sobre mudanças no ensino?
Em princípio, vejo com muita dificuldade qualquer possibilidade de avanço. Mas não vejo essa dificuldade por conta da situação política de hoje. Isso já estava presente nos governos anteriores. Pelo menos desde as gestões do Fernando Henrique Cardoso há o alinhamento da política educacional brasileira com princípios que poderíamos chamar de neoliberais da gestão econômica e política. Os governos posteriores fizeram algumas mudanças, mas não alteraram essa lógica. A grande transformação necessária seria sair da lógica de ver educação como mercadoria. Temos muitos discursos críticos nesse sentido, mas todos os governos do país, nos últimos 40 anos, trataram a educação como mercadoria. Por isso, não vejo muita perspectiva de sair desse modelo. Temos de construir alternativas.