Mesmo tendo atuado por muito tempo no serviço público, a professora e pesquisadora Claudia Costin ainda se impressiona com a atuação do governo federal na educação. E não de forma positiva: é a falta de protagonismo do Ministério da Educação (MEC) que a preocupa, sobretudo durante a pandemia. Ao menos, observa, a inércia federal deu espaço para que Estados e municípios arregaçassem as mangas e dialogassem. Claudia é um dos maiores nomes brasileiros quando se pensa em políticas públicas na área: foi professora-visitante da Universidade de Harvard, diretora Global de Educação do Banco Mundial e ministra da Administração e Reforma do governo Fernando Henrique Cardoso. Hoje, é diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presta mentoria a três secretários estaduais e 50 municipais de educação de todo o Brasil. Nesta entrevista concedida por Skype, ela fala sobre a volta às aulas na pandemia, as boas práticas de países-modelo e sua recusa em ser ministra da Educação do governo Jair Bolsonaro.
O Brasil volta às aulas, mas em muitos Estados a epidemia não está controlada nos parâmetros que outros países estavam quando retomaram. Voltamos na hora certa?
Não sou epidemiologista, o que faço é ajudar secretários a preparar a escola para a retomada. O que certamente não queremos é voltar com escolas despreparadas. Por outro lado, surgiu uma narrativa de voltar só com vacina. Conversei muito com epidemiologistas e todos me disseram: vacina para amplas massas não aparecerá antes de 2022. Temos de organizar como fizeram países com cultura de contato físico como a nossa. Hoje, há a consciência de que, se as condições epidemiológicas melhoram, é preferível voltar às aulas do que esperar a vacina. Especialmente se olharmos para crianças de maior vulnerabilidade. Elas estão pior do que se estivessem na escola. Estão na rua, sem a rede de proteção social oferecida pela escola. Dentre as 79 economias que participaram do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa), o Brasil tem a segunda maior desigualdade educacional. Precisamos lidar com isso.
O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, concluiu que não havia consenso sobre se seria adequado ou não retomar as aulas presenciais. Existe algum consenso?
Há dois consensos. O primeiro é que é fundamental usar máscara. A decisão do governador deve se basear em uma pesquisa recente, segundo a qual crianças com menos de 10 anos são vetores muito mais fracos de transmissão a adultos. Por serem geralmente assintomáticas, não tossem nem espirram, então não contaminam tanto. A segunda questão fundamental é ter retorno escalonado: não dá para ter uma turma de 35 alunos. Geralmente, outros países começaram a retomada com os alunos mais velhos.
A senhora vem acompanhando o trabalho do governo gaúcho na educação durante a pandemia?
Pouco. No Rio Grande do Sul, sou mentora apenas do secretário de Educação de Esteio. Conversei com o governador há dois meses.
Sobre o quê?
Se a volta deveria começar pela Educação Infantil e pela creche. Falei que achava muito arriscado crianças de dois anos ou menos voltarem. Aliás, saiu na resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) que é melhor deixar para mais tarde. As pesquisas mostram que a transmissibilidade é baixa, mas com criança muito pequena é difícil ter distanciamento. Acho que o ideal é creche não voltar agora.
Há a consciência de que, se as condições epidemiológicas melhoram, é preferível voltar às aulas do que esperar a vacina. Especialmente se olharmos para crianças de maior vulnerabilidade. Elas estão pior do que se estivessem na escola. Dentre as 79 economias que participaram do Pisa, o Brasil tem a segunda maior desigualdade educacional. Precisamos lidar com isso.
Há vários protocolos criados nas escolas, desde a oferta em álcool em gel até tapete sanitário e medição de temperatura na entrada. O que é bobagem e o que faz diferença?
O mais importante é organizar cozinhas, refeitórios e recreio para todo mundo não ficar junto – o ideal é cada classe ter o recreio separadamente. Ter tapetes faz algum sentido, mas é muito visual. A pia na entrada da escola faz muita diferença, assim como ver se a criança tem febre. Algo interessante é ensinar às crianças o distanciamento social, como brincar de aviãozinho sem encostar as mãos no coleguinha, ou ainda ensinar formas de manifestar afeto, na qual a criança toca o coração e fala que gosta da outra. Sei que não tem a ver com nossa cultura, mas vivemos um tempo de emergência, então teremos de viver outros hábitos. Valerá a pena se salvarmos vidas, e quem sabe as crianças levem um pouco de seriedade aos pais... Porque o que vemos de pais na praia ou em barzinhos. Quer dizer, só a escola é perigosa?
Incomoda à senhora o fato de escolas abrirem depois de bares?
Me incomoda a educação não ser considerada um serviço essencial. É uma visão de que escola é lugar para deixar os filhos para serem cuidados. E a visão de não mandar o filho para a escola até ter vacina esquecendo o que isso significa para as crianças mais pobres em termos de alimentação, cuidado e aprendizagem. Dizer que precisa esperar a vacina é particularmente cruel com as crianças mais pobres.
Vivemos um tempo de emergência, então teremos de viver outros hábitos. Valerá a pena se salvarmos vidas, e quem sabe as crianças levem um pouco de seriedade aos pais... Porque o que vemos de pais na praia ou em barzinhos. Quer dizer, só a escola é perigosa?
Como a pandemia deve acentuar a desigualdade social? O que deve ocorrer nos próximos anos no Brasil?
Há um brutal aumento da desigualdade social. Os pais das crianças mais pobres estão perdendo fonte de renda. Além disso, somos um país com alta defasagem idade-série. Ou seja, temos um jovem que deveria ter 11 anos no 6º ano, mas tem 15, por repetir muito. Se o jovem com 17 perde o ano por conta da pandemia, as chances de seu pai, que perdeu renda, pôr o filho para trabalhar são imensas. E, se lembrarmos que vivemos a quarta revolução industrial, na qual a inteligência artificial vem substituindo o trabalho humano, é uma situação muito ruim não concluir o Ensino Médio. As chances de não ter empregabilidade ou capacidade de empreender são enormes. Os jovens têm chance de serem uma geração perdida. Vivemos tempos tristes.
O que deve ser feito para amenizar esse impacto?
Saber o momento de voltar, e voltar de forma escalonada. Mas é preciso começar. Alguns secretários trabalham com a hipótese de, no Ensino Médio, só ir para a escola quem não tem equipamento em casa. Os professores ficam em casa transmitindo as aulas e, na escola, ficam diretor, diretor-adjunto e coordenador pedagógico organizando o ambiente. Mas todos os secretários estaduais preparam um retorno. Onde a coisa está pegando? Municípios. Nesse período de eleições municipais, dá medo a prefeitos de acontecer algo errado e a oposição acusá-los de não terem sido suficientemente cautelosos.
A senhora já citou Alemanha, França e Portugal como exemplos. O que eles fizeram e que poderíamos fazer?
África do Sul também. Todos voltaram com protocolos. Não é que não teve nenhum novo caso. Teve, mas o que se faz: se aparece um caso em uma turma, a turma fica 14 dias em casa. Se aparece em mais de duas turmas, a escola fecha por 14 dias. Chegaram a falar que 70 escolas fecharam na França. Não. É o seguinte: tem 3,6 mil escolas na França e, ao longo do período, aparecerem casos de covid e 70 fecharam por 14 dias. Acho surpreendente a Espanha, onde já chegou a segunda onda e mantiveram as escolas abertas. Não sei se conseguirão manter isso. Eu preferiria ser mais assertiva, mas a realidade é que estamos tateando. Hoje, restaurantes estão abertos, sendo que os riscos são significamente maiores, já que as pessoas não usam máscara. Temos barzinhos e centros comerciais abertos. Só as escolas que não estão.
Por que a senhora acha que se optou por abrir comércios e não escolas?
Pela crise econômica, que tira emprego de muita gente. Também porque, nas escolas, o maior número de professores é da rede pública, ainda que escolas particulares precisem reabrir porque tem muito professor sendo demitido. Por fim, há uma visão dos sindicatos de que não é hora de se abrir.
O Ministério da Educação fez muito pouco. O ministro Milton Ribeiro está errado e mostrou que está interessado na continuidade de uma certa guerra ideológica que não ajuda em nada.
O ministro da Educação, Milton Ribeiro, declarou que não cabe ao MEC organizar a volta às aulas porque quem decide isso são Estados e municípios. Qual é o papel do MEC?
Ele está profundamente errado. O papel de um Ministério da Educação, mesmo em uma República Federativa, é coordenar a política educacional nacional. Se não, não faz sentido existir. O ministro disse isso, mas seu ministério preparou um protocolo biossanitário para apoiar as redes na volta às aulas. Só que, quando ele divulgou esse protocolo, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) já tinham espalhado protocolos para todo o mundo. Houve um protagonismo de ambas as entidades na resposta à covid, ocuparando um espaço não ocupado pelo MEC. O MEC fez muito pouco. O ministro está errado e mostrou que está interessado na continuidade de uma certa guerra ideológica que não ajuda em nada.
Como a senhora classifica a declaração do ministro de que a homossexualidade é uma opção e que ocorre em famílias desajustadas?
Ele tem o direito de ter suas convicções religiosas. Mas elas ferem o que está na Constituição e os direitos humanos, uma causa muito querida à educação. E contrariam a ciência, que diz que ser homossexual não é uma escolha que a pessoa faz.
Vivemos uma era de conservadorismo na qual políticas públicas não são importantes. Tirando a política econômica, o resto parece não ser importante. Fico muito triste com isso tudo.
A senhora já foi ministra. Atitudes dos atuais ministros, como essa, a chocam?
Fui ministra em outro tempo. Vivemos uma era de conservadorismo na qual políticas públicas não são importantes. Tirando a política econômica, o resto parece não ser importante. Fico muito triste com isso tudo. Chego a pensar: puxa, o que fizeram com meu país.
O que eleitores devem cobrar nas eleições municipais?
Desconfie de qualquer pessoa que só fala da agenda de costumes ou de corrupção. Eu sou contra a corrupção, mas ser contra a corrupção é pré-condição, não realização. Pergunte o que o candidato quer fazer na educação, dentro da folga fiscal, para que as crianças aprendam mais, e não só construir prédios bonitos. Como vamos recuperar o estrago da pandemia na aprendizagem das crianças? É importante se preocupar com a primeira infância, porque muito do que acontece depois vem após ter recebido alimentação correta, estimulação do cérebro e creche para quem precisa. Também se deve ter um elo entre desenvolvimento econômico e educação: mesmo que o Ensino Médio seja responsabilidade estadual, tem de buscar alternativas de renda para a juventude.
No último Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), o Brasil viu uma melhora em todas as etapas, com um salto maior no Ensino Médio. O que explica isso?
É resultado de uma longa jornada. Começou quando decidimos ter um Ensino Fundamental com um ano a mais e quando começamos a avaliar a educação em todas as escolas no 5º e 9º ano. Quando, mais tarde, criamos uma cultura de monitoramento de aprendizagem em boa parte dos municípios e Estados, onde se fazem provas regulares a cada dois meses para ver se há evolução. E, também, quando você cria uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e define, com clareza, o que esperar que crianças e adolescentes aprendam. Ao fazermos a prova do Ideb em 2019, ainda não se tinha a Base traduzida em currículos estaduais para o Ensino Médio, mas o esforço de discutir o que precisa ser ensinado e a formação aos professores ajudou. Educação é política de Estado, não de governo. Engraçado que, na ausência do MEC, os secretários de Educação do Brasil inteiro têm se reunido o tempo todo. E vem sendo um trabalho bastante interessante.
Especialistas entrevistados por GZH citaram algumas formas de manter os avanços do Ideb, como aumentar o salário de professores, modernizar o currículo, manter uma política educacional independentemente dos governos, formar professores e melhorar a infraestrutura das escolas. A senhora concorda com esses pontos?
Não tem bala de prata na educação, mas algumas coisas ajudam bastante. Melhorar o salário de professores é importante, porque precisa atrair os melhores alunos de Ensino Médio para a carreira. Evidentemente que salário não é tudo, mas, se o salário está em um patamar muito baixo, ainda que o jovem seja um idealista, há um limite. A formação de professores é outro ponto importante, porque universidades infelizmente formam professores não para a profissão. Não há nenhum diálogo entre teoria e prática. Os próprios concursos públicos reproduzem defeitos: há aula prática para ser professor de universidade federal, mas não para ser professor de criança e adolescente, que é muito mais complicado. Também é preciso ensinar o professor e o diretor a trabalharem com dados. Por fim, política de Estado é algo sagrado: não é que um prefeito ou governador novo não possa mudar alguma coisa, mas deve construir o que começou a ser montado lá atrás.
O Pisa mostra que as escolas particulares brasileiras são piores do que as escolas públicas europeias. O que explica o fraco desempenho das instituições onde estuda a elite do Brasil?
Temos uma desigualdade educacional profunda, mas as escolas particulares frequentadas pela elite se saíram melhor nesse Ideb do que no anterior. Só que, para escolas públicas e privadas, é a mesma baixa atratividade da carreira de professor e a mesma formação inadequada recebida na universidade. O livro A Grande Gripe, de John Barry, mostra que faculdades de Medicina nos EUA e em boa parte do mundo eram muito teóricas e facílimas de entrar porque não havia prestígio na profissão no século 19. Não se exigia conhecimento de biologia e não havia hospitais universitários. Em outros termos, não havia diálogo entre teoria e prática. Foi quando a Johns Hopkins foi criada que surgiu a ideia de um hospital universitário que conectasse à prática. A faculdade não preparava para a profissão, que não tinha prestígio.
Política de Estado é algo sagrado: não é que um prefeito ou governador novo não possa mudar alguma coisa, mas deve construir o que começou a ser montado lá atrás.
É o caso das licenciaturas hoje?
Sim. Não há preparação para a prática. O Chile, há sete anos, começou a fazer a mesma transformação e, não por acaso, é o país da América Latina com as melhores notas. Desde o primeiro ano da faculdade você está no chão de uma escola – não só para estágio, mas também assistindo à aula de professores. A grande transformação que houve na Finlândia começou por tornar a formação de professores profissionalizante, em guerra com universidades finlandesas. Teve conflitos, foi um caos há 40 anos. Para ser professor lá, não basta ter graduação, tem de ter mestrado profissional extremamente ligado à prática. Você não aprende a ser médico tendo palestras sobre Medicina, tem de estar no hospital universitário desde o primeiro ano. Mas a gente acha que professor não precisa ser conectado à prática...
O governo federal planeja voltar a taxar livros, sob o argumento de que é um produto das elites. O brasileiro lê em média 5,5 livros por ano. Que efeitos a taxação pode ter na educação?
Somos ainda um país de não leitores. O preço do livro é caro porque as tiragens não são grandes. A gente precisa sair desse ciclo vicioso. A própria maneira como trabalhamos a leitura na escola leva a não sermos um país de leitores. A Confederação Nacional de Trabalhadores em Educação (CNTE) elaborou, em 2002, uma pesquisa mostrando que 60% dos professores não tinham hábito de ler. Faz tempo, mas dá um indicativo de que somos um país de elites não leitoras. A conclusão do Paulo Guedes é o contrário: “A gente lê pouco, então vamos tornar o livro ainda mais caro porque é um produto das elites”. Não! Vamos criar uma política de fomento à leitura, que comece na escola – mas não fique só na escola. É fundamental ter bibliotecas públicas em todos os municípios. Sou supercontra taxar os livros, só vai encarecê-los e tornar o Brasil menos leitor. Morei no Exterior várias vezes. O que me impressionou quando fui com quatro filhos para os EUA foi que, na matrícula da escola pública, davam a carteirinha da biblioteca municipal.
Vamos criar uma política de fomento à leitura, que comece na escola – mas não fique só na escola. É fundamental ter bibliotecas públicas em todos os municípios. Sou supercontra taxar os livros, só vai encarecê-los e tornar o Brasil menos leitor.
Como a senhora vê a nomeação, em diversas universidades federais brasileiras, de reitores que não foram os escolhidos por votação pela própria comunidade acadêmica?
O ideal e a tradição é nomear o mais votado. Não acho errado nomear o terceiro colocado, mas tem que ver quantos votos teve a pessoa. Já vi governador de São Paulo escolher o segundo colocado em uma lista tríplice, mas que teve uma votação importante. O que falamos agora é de uma votação completamente inexpressiva para um terceiro colocado.
A senhora foi sondada para ser ministra da Educação, mas decidiu seguir na FGV e prestando mentoria em educação. Está feliz?
Muito. Não foi a primeira vez que fui sondada para ser ministra, não só nesse governo. Nessa sondagem, eu logo de pronto falei que não. Estou muito contente com minha etapa de vida. Mesmo que eu tivesse afinidades com esse governo, e não tenho, acho que ajudo mais o Brasil onde estou agora do que como ministra.