Em seu mais novo livro, A Tensão Superficial do Tempo, o escritor catarinense (nascido em Lages) radicado no Paraná Cristovão Tezza costura a história de um professor de química que pirateia filmes para a mãe idosa. Sentado no Passeio Público de Curitiba, o personagem rememora relacionamentos, carreira e família em um Brasil polarizado. As menções ao momento político despontam como pano de fundo, aludindo ao país governado por Jair Bolsonaro: a cidade da história é Curitiba, cenário-mor da Lava-Jato, e o protagonista é amante de uma mulher casada com um procurador federal. Emocionalmente quebrado, ele vive em um país instável. Essa situação é aludida no nome do livro, que remete ao fenômeno da natureza que explica como insetos conseguem caminhar sobre a água sem afundar. Nesta entrevista, Tezza, que é autor de diversos outros livros, entre os quais o premiado best-seller O Filho Eterno, defende que a literatura aborde o presente, mostra seu espanto com o governo Bolsonaro, mas critica também a gestão do PT.
Cândido, o protagonista de A Tensão Superficial do Tempo, é um observador e melancólico, que parece não ter feito as pazes com a realidade. Pensa na ex-mulher várias vezes enquanto tem um caso, pirateia filmes para ocupar a mãe velhinha e começa a circular com a elite do judiciário depois de infringir a lei. O que você queria retratar da realidade com esse personagem?
Eu não tinha uma ideia muito clara de quem o Cândido era. Tinha a primeira cena do livro na cabeça, do Cândido sentado à beira do lago, e também a última de toda a narrativa. Mas era quase uma forma sem conteúdo. Minha ideia era escrever sobre uma fratura amorosa profunda e desestabilizadora a ponto de deixar um cara completamente destroçado. Havia uma segunda ideia: escrever quase uma comédia sobre um cara que sabe tudo sobre pirataria de filmes. Juntaram-se as duas coisas. Costumo brincar que a liberdade do narrador termina na segunda frase. Quando a página está em branco, tudo pode ser rescrito. Mas, quando você escreve a primeira frase, já coloca a grade narrativa e não pode mais sair dessa jaula que dá o tom, o vocabulário, o espaço e o tempo. Não era ideia minha escrever sobre o momento político brasileiro, mas, quando coloquei um tempo e um espaço precisos na trama, ficou impossível não pensar nisso. Por exemplo, a presença do procurador da República não era uma ideia inicial: surgiu no diálogo dele com a aluna, em que a aluna, ao falar brincando sobre a legalidade ou não da pirataria, diz: “Meu pai é procurador, ele fala muito de questões jurídicas”. Aí me deu o estalo: tem uma temática aqui.
O senhor faz uma crítica de costumes da elite, algo marcado na cena da festa em que as pessoas se portam da forma mais educada e polida possível, oferecendo canapés aos convidados, mas depois defendem violações a direitos humanos. Como essa dualidade existe?
É um pergunta que se faz: como o Brasil vive essa barbárie atual? A questão do bolsonarismo não é ser de direita ou de esquerda. Não há uma divisão política: o bolsonarismo é a ausência de política. Tanto direita quanto esquerda têm pautas interessantes e defensáveis em todas as áreas e que se podem colocar na mesa. O bolsonarismo não, ele vira essa mesa. É um Estado desagregador. Há esse choque, porque você tem o país da cordialidade e um presidente que é um permanente estimulador da violência. Uma obra de ficção é um termômetro do tempo. O escritor junta os cacos da realidade e tenta dar algum sentido e uma representação que crie empatia com o leitor para tentar entender o que está acontecendo.
Muitos autores fogem da tarefa de retratar o momento atual, incluindo o contexto político. Não é o seu caso: o senhor fez isso nos livros mais recentes, ao puxar questões sociais para a narrativa, ainda que como pano de fundo. Por que essa articulação nem sempre existe? Há uma distância necessária entre a literatura e o presente mais próximo?
O romance nunca teve medo do presente. Um de seus traços como linguagem é a atenção ao tempo presente – ao contrário da epopeia, que trata de fatos de um passado heroico e mítico. Dom Quixote é uma sátira do romance de cavalaria daquele tempo, do ridículo de falar de um passado heroico (o romance de Miguel de Cervantes foi publicado em 1605). No século 19, isso ocorre mais ainda, basta pegar (Charles) Dickens, (Gustave) Flaubert ou praticamente todos os russos, que escreviam sobre o momento do presente. A literatura nunca fugiu disso. O que dá um certo temor é trabalhar com gírias ou coisas muitas datadas, porque o livro, um ano depois, pode perder o sentido, ou você criar um vínculo com fatos que são mais jornalísticos do que literários, como discutir o ministério do Bolsonaro. Para isso, eu vou ler a Zero Hora ou outros jornais, e não um romance. O espírito do tempo é presente e pode ser trabalhado. Isso foi aparecendo aos poucos na minha literatura.
Não há uma divisão política: o bolsonarismo é a ausência de política. Tanto direita quanto esquerda têm pautas interessantes e defensáveis em todas as áreas e que se podem colocar na mesa. O bolsonarismo não, ele vira essa mesa. É um estado desagregador.
De onde veio a necessidade de retratar, na tua literatura, como pano de fundo, governos e contextos políticos?
Sou um escritor formado, na adolescência dos anos 1970, anos turbulentos de ditadura militar. Nesse período, eu tinha 16 anos e já estava na minha cabeça que queria ser escritor. Naquele tempo, você escrevia para mudar o mundo. Muitos escritores que eu lia naquele tempo, como Josué Guimarães, Jorge Amado, Erico Verissimo e Antonio Calado, faziam uma ficção das questões urgentes da época, embora tomassem o cuidado pra não escrever um panfleto. No final dos anos 1970 e nos 1980, a literatura se tornou muito intimista, com um certo escapismo formal, e se fragmentou no próprio fato de que o romance deixou de ter a pretensão de abarcar o mundo com grandes explicações: passou a ser um veículo de vozes individuais. Ainda houve, nos anos 1980 e 1990, um certo domínio do discurso literário brasileiro pela universidade, que acolheu escritores. Eu mesmo fui professor, durante 20 anos, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). A universidade começou de certa forma a criar uma pauta literária, dizer o que deveria ser escrito, e isso direcionou muito nossa produção. Depois, você tem a internet, que presentificou tudo, porque puxa as coisas para o tempo presente. Acho que também pesou o fato de que, durante dois anos, assinei uma coluna na Folha de S.Paulo, e isso me puxou para pensar o presente. Mas a literatura não tem de ter medo do tempo presente. Como escritor, isso não me assusta.
O senhor brinca, em um trecho, que todas as manhãs o povo brasileiro consulta o WhatsApp para saber a quantas anda a Lei da Gravidade. Depois, escreve que “as moléculas não param mais em estado sólido, é o tal do mundo líquido”, em referência a Bauman. Que mundo é este em que vivemos?
Uma das quebras mentais estabelecidas pelo bolsonarismo é um discurso político objetivamente antifactual. É uma negação dos sistemas de referência do dia a dia. Você pode imaginar alguém achar que a Terra é plana e levar isso a sério? Houve um fracasso civilizacional. Esses discursos polarizados miram simples conquistas civilizacionais. A condição humana não é dada pela natureza: é uma construção cumulativa da cultura. Quando você, abruptamente, apaga isso e tenta regredir para começar tudo de novo, é uma coisa assustadora. A internet, de certa forma, abriu uma caixa de Pandora. Você perde pontos de referência através dos quais a vida ganha um sentido – como a ciência. De certa forma, isso vem com um império de um certo relativismo cultural, muito forte nos anos 1980 e 1990. Quando você destrói a ideia de uma condição humana universal como utopia possível, aí você volta para um mundo puramente tribal, em que tudo é ponto de vista e, se tudo é ponto de vista, você não tem um sistema comum de referência. Agora, há (no poder) uma ausência de qualquer discurso minimamente articulado. As falas são todas quebradas, a palavra é massacrada. Há anti-intelectualismo, horror à inteligência e à racionalidade comum... Tudo isso para voltar ao livro e dizer que eu estava ali com o Cândido, em um momento de extrema fragilidade emocional, que não aguentou o rompimento com a Antônia, e isso o desmonta.
Uma obra de ficção é um termômetro do tempo. O escritor junta os cacos da realidade e tenta dar algum sentido e uma representação que crie empatia com o leitor para tentar entender o que está acontecendo.
Citando um trecho do livro, lhe pergunto: o senhor acha que “a internet botou esses imbecis no poder”?
(Risos.) Eu partilho da ideia do Umberto Eco de que a internet deu voz a imbecis que, antigamente, só conseguiam falar no boteco ou no churrasco. Qualquer cidadão cria um perfil e começa a agir à sombra dos sistemas institucionais. Isso coincidiu com a queda econômica do jornalismo profissional, um adubo no qual a violência bolsonarista se faz. É o orgulho da ignorância, de bater no peito.
Ou de afirmar que uusar máscara é “coisa de veado”.
É um tipo de discurso que se passa por autêntico. Para o não letrado, a autenticidade é um valor positivo, e a brutalidade passa a ser autêntica. Isso é falso, não é um valor por si só. A condição da civilização é você criar protocolos de comportamento que são formas sem conteúdo, no sentido de que, antes de qualquer conteúdo das relações humanas, há formas de convivência acertadas. Isso é o império da política, que nunca fez tanta falta no Brasil.
Qual o papel da literatura para o leitor em tempos de pandemia, em meio a um momento de isolamento social?
Li que houve aumento de 30% a leitura neste período de isolamento. A literatura vive do silêncio e da reclusão. É preciso estar sozinho e se depende de uma mercadoria altamente preciosa, o tempo. Quando começou a pandemia e a ideia de se fechar na quarentena, eu pessoalmente não senti impacto algum. Saio pouco de casa. O Felipe (filho do escritor) tem aulas do ateliê de pintura do qual participa pela internet e está achando o máximo, porque domina bem a questão da internet. Pelo fato de ser uma criança eterna (referência ao fato de Felipe ter síndrome de down e ser retratado no livro O Filho Eterno), ele acha muito interessante estar o tempo todo com os pais. Já eu pensei que colocaria todas as minhas leituras em dia, mas estou impressionado com minha dispersão. Não dá para fingir que não está acontecendo nada. É uma situação muito angustiante: quando tudo vai acabar para eu me organizar? Eu estou fazendo leituras muito erráticas.
O senhor escreve que o Brasil é “grande, lento, irreversível e pesado” ao ressaltar que o país pouco a pouco vai esmagar o presidente. O que quer dizer?
É uma visão irônica do personagem. O Brasil é um país de complexidade muito grande. Institucionalmente, é bem mais forte do que a gente imaginava. Há o desejo evidente do bolsonarismo de dar um golpe militar, mas a coisa deu chabu, ninguém está a fim de entrar nessa fria, principalmente para defender a família Bolsonaro. A segunda questão é que há corporações muito fortes, como o Judiciário e a Polícia Federal. É difícil de mexer nessas estruturas com poucas canetadas. Ele está se esforçando muito para aparelhar o Estado, de uma forma que nem o PT, que era um especialista nisso, teve coragem de fazer. Quando o personagem fala que o Brasil é pesado e paquidérmico é porque não é fácil chegar e tomar conta, como se fosse uma pequena republiqueta. É uma grande republiqueta que não é fácil de tomar de assalto. É uma expressão irônica, porque ele (Bolsonaro) será esmagado pela própria incompetência política.
O senhor já escreveu em um texto que “o retorno à barbárie é sempre uma possibilidade viva e concreta”. Caminhamos para a barbárie?
Ela está ao lado, mostrando a cabeça. A violência no Brasil é espantosa: no Rio de Janeiro, há áreas inteiras que pertencem a milícias, responsáveis por administrar da entrega do botijão de gás ao sinal de TV. Isso é a expressão da barbárie. E há políticas estimuladas deliberadamente pelo governo atual, como a liberação de armas. A história não vai necessariamente em uma direção. Ela vai e vem. A construção da cultura é diária. E o Brasil tem um problema terrível, que é o ensino básico, com um Ensino Médio que é um fracasso. São milhões de adolescentes que saem todos os anos cuspidos de uma escola muito ruim. É uma multidão de brasileiros para os quais a barbárie está à porta.
Ninguém fez mais cancelamento do que Stálin, que apagava Trotsky de fotos oficiais. A internet propiciou isso num sentido assustador. Na área da arte, o erro é não separar o homem da obra, porque, se você levar ao pé da letra, você não lê nem Shakespeare. Isso não pode ser apagado, mas repensado e discutido.
O senhor acompanhou o manifesto contra a cultura do cancelamento na esquerda, assinado por Chomsky, Margaret Atwood, J.K Rowling e outros 150 escritores, publicado na Harper’s Magazine? O argumento é de que esse tipo de atitude empobrece o debate, citando como exemplo a oposição às estátuas nos EUA. O que acha?
Acho um debate excelente. A cultura do cancelamento é uma das expressões da internet que propiciam esse processo. Ninguém fez mais cultura do cancelamento do que o Stálin, que apagava o Trostky de fotos oficias. A internet propiciou isso num sentido absolutamente assustador: a multiplicação policiana de você ter um processo de destruição de pessoas públicas. Acho isso uma estupidez, esse comportamento de manada que coloca cada situação momentânea, por vezes acidental, em um tribunal do júri. Na área da arte, há o erro fundamental de não separar o homem da obra, porque, se você levar ao pé da letra, você não lê nem Shakeaspeare. sso não pode ser apagado, mas repensado e discutido. E o cancelamento pessoal é um horror.
Muitos escritores apontam um “politicamente correto” que limitaria a liberdade criativa dos escritores. Como o senhor se posiciona em relação a isso?
O surgimento da ideia do politicamente correto foi de uma forma positiva, para chamar a atenção para os lugares comuns que reforçam situações negativas ou opressivas. Chamar a atenção é positivo, dizer que alguém repete um discurso que não é o seu. Mas de repente isso vira uma histeria, e se começa a perseguir palavras.
O senhor já se declarou de esquerda nos costumes e de direita na economia. Muitos o apontam como conservador. O senhor se considera conservador?
Minha formação é de esquerda, fui criado sob o golpe militar e abaixo de ditadura, então havia um certo imperativo ético com relação à esquerda brasileira. Num momento de ruptura existencial, quando saí com um grupo de teatro, eu era um libertário, um hippie contra o sistema, mas nunca fui esquerda de carteirinha. Cheguei a abrir uma oficina de conserto de relógios, porque como artesão eu teria mais condições de viver uma vida mais autêntica. Ou seja, era um libertário, um anarquista – até hoje tenho horror do Estado. Isso já me separa da esquerda tradicional, porque a esquerda adora o Estado. Mas é óbvio que, em um país como o Brasil, com a desigualdade brutal que tem, precisa haver políticas econômicas e sociais muito marcadas, então precisa de Estado. Do ponto de vista econômico, há uma pauta com traços de liberalismo e privatizações que eu acho muito úteis e bem-vindas para o Brasil. Na questão de costumes e direitos individuais, sou um libertário. O brasileiro tem uma originalidade nisso. Do ponto de vista econômico, a pauta da direita liberal tem muito a ensinar à esquerda brasileira. Aliás, a esquerda fracassou, a Dilma foi um fracasso eminentemente econômico, o que criou as ondas posteriores. Quando a coisa vai mal na economia, tudo o que tem de pior vem à tona. É engraçado porque a direita brasileira não é liberal, ela ama o Estado para sugá-lo – assim como a esquerda.
Para finalizar, qual a sua idade?
Tenho 67 anos. Ainda. A partir dos 50, o tempo é outro e, a partir dos 60, é outro também. Para os jovens, o tempo não existe. Não é uma variável esperada.
O senhor está mais consciente do tempo?
Ele é que me percebe mais (risos). Passa a ser uma variável interessante.