Formada em Ciências Internacionais em Instituições Europeias pela Universidade de Milão, com pós-graduação em Direito Internacional na Bélgica, Flora Arduini liderou uma pesquisa sobre o impacto das notícias falsas (fake news) em tempos de coronavírus. O estudo foi conduzido pela Avaaz, organização da sociedade civil que tem pressionado governos e empresas pela regulamentação da atuação de plataformas digitais, como Google e Facebook, uma das formas de se combater a desinformação. Os números são alarmantes: a investigação revelou que nove em cada 10 brasileiros foram alvo de notícias falsas sobre a pandemia. Entre as mentiras, estão a de que o vírus teria sido criado em laboratório na China e de que vitamina C poderia retardar ou impedir a infecção.
Nascida em São Paulo, Flora viveu parte da adolescência em Porto Alegre. Entre as campanhas que liderou, estão uma ação de proteção à Amazônia e outra que expôs a rede de desinformação pró-Jair Bolsonaro nas eleições de 2018. A Avaaz tem mais de 60 milhões de membros e é financiada 100% pelos participantes, não aceitando grandes doações. De Londres, onde mora há quatro anos, Flora concedeu a seguinte entrevista a GaúchaZH.
Nove em cada 10 brasileiros foram alvo de desinformação sobre o coronavírus. somos mais suscetíveis a fake news?
Seria leviano dizer só por conta desse dado que o brasileiro é mais suscetível. Mas um grande problema é que as campanhas de desinformação se utilizam das emoções. Estamos vivendo um momento extremamente polarizado no Brasil, em que até questões de saúde estão sendo usadas como temas políticos. Dificilmente você vai ver uma fake news sobre algo positivo. Sempre vai ser algo superforte emocionalmente, que leva o usuário a se engajar de forma apaixonada. Por isso viraliza tão rápido. São temas que nos tocam diretamente em valores e crenças. O contexto no Brasil talvez tenha sido propício por isso. Mas, embora o Brasil tenha sido o país que mais viu desinformação, é importante pensar que 73% dos brasileiros acreditaram em ao menos um conteúdo falso recebido, contra 65% dos norte-americanos e 59% dos italianos, ou seja, os números são altos, mas se aproximam. É assustador nos três países. Outro dado interessante é que 46% dos brasileiros entrevistados acreditam que amigos e famílias foram vítimas de fake news.
Por que vocês escolheram analisar Brasil, Itália e EUA?
Temos uma equipe permanente que monitora desinformação circulando nas redes sociais. A gente já vinha observando que a desinformação com relação ao coronavírus crescia muito rapidamente. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) disse que havia duas crises a serem combatidas: uma era a do vírus e outra, a “infodemia”, desinformação sobre a pandemia. E essa desinformação crescia nesses três países. A Itália, no período em que conduzimos a pesquisa, em meados de abril, ainda era o epicentro do problema. Com relação a EUA e Brasil, infelizmente, a dimensão que essa crise tomaria nesses dois países era uma tragédia anunciada. Víamos como vinha sendo tratado o tema do coronavírus nesses dois países.
Como foi feito o estudo?
A Avaaz construiu a pesquisa e contratou um instituto para usar o database deles. Entrevistamos 2 mil pessoas em cada país para termos uma amostra estatisticamente sólida. Selecionamos sete fake news virais naquele momento no mundo inteiro. E perguntamos se cidadãos desses países tinham visto pelo menos uma delas. O número de respostas “sim” foi assustador.
O Brasil tem a chance de liderar uma nova fase de regulamentação dessa indústria que são as plataformas de redes sociais. Desinformação se combate com informação de qualidade. Mas falta transparência e atitudes concretas das plataformas.
Uma das conclusões aponta WhatsApp e Facebook entre as três fontes mais citadas pelos brasileiros para notícias falsas. Como combater o problema em um ambiente fechado como o WhatsApp?
O WhatsApp traz desafios que as outras redes não trazem. Será desafiador para as agências reguladoras, se a lei contra fake news passar no Congresso. Mas essa legislação, quando for aprovada, vai regulamentar todas as redes sociais. O WhatsApp é parte do grupo Facebook. Com uma legislação, você consegue regulamentar os principais atores, que não são muitos. Há medidas importantes que já estão sendo tomadas pelo WhatsApp. O Ministério da Saúde e a OMS criaram canais na plataforma para o usuário se informar sobre o coronavírus. O usuário pode enviar uma notícia falsa que ele tenha sido vítima e, automaticamente, começa a receber informações mais acuradas por parte das duas autoridades. Outra medida que pode ser tomada pelo próprio WhatsApp é diminuir a distribuição. A restrição à quantidade de encaminhamentos já existe. A desinformação não tem fronteiras. Ela circula de uma plataforma para outra. A gente vê vídeos no YouTube que aparecem como preview no WhatsApp. Ou vê no Facebook memes que circularam no WhatsApp. Uma vez que você envia uma notificação para os usuários de uma rede social (informando sobre a notícia falsa), você automaticamente espera que a informação verdadeira flutue sem fronteiras por outras redes.
Vocês apoiam o projeto da lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, a “Lei contra Fake News”, liderada pelos deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Filipe Rigoni (PSB-ES) e pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Como está o andamento desse projeto?
Essa legislação vai conseguir regulamentar essa indústria que tem passe livre legislativo no mundo todo. A Avaaz apoia esse projeto de lei, porque traz alguns pontos concretos. Tira um pouco da questão etérea do que são fake news e traz para a prática do que pode ser feito. Os quatro pontos fundamentais são: maior transparência por parte das plataformas, ou seja, o usuário tem de entender quando um conteúdo é promovido por qual ator, e quanto é gasto na promoção daquele conteúdo, por exemplo; proteção aos usuários reais, que significa valorizá-los em detrimento dos robôs que distribuem conteúdos falsos, que por sua vez devem ser removidos; o que temos chamado de “mostrar os fatos”, que é o envio, por parte da plataforma, de um artigo redigido por uma agência de checagem confirmando que certo conteúdo é falso para as pessoas que o receberam; e, por fim, o comprometimento legislativo de que as plataformas deixarão de promover os conteúdos verificadamente falsos.
Esse tipo de legislação existe em outro país?
Esse seria o primeiro projeto de lei no mundo que garantiria maior informação ao usuário. Desinformação se combate com informação de qualidade. Essa seria a primeira legislação no mundo que daria aos usuários de redes sociais mais direitos do que eles têm agora. O Brasil tem a chance de liderar uma nova fase de regulamentação tão necessária dessa indústria que são as plataformas de redes sociais. Em nossa pesquisa, 80% dos brasileiros disseram querer receber correção de verificadores de fatos todas as vezes em que eles forem expostos a notícias falsas. A Avaaz realizou um estudo nos EUA em que foi provado que, quando uma pessoa recebe uma correção, cai em 50% a chance de acreditar naquela fake news. Nada vai ser retirado do ar porque é falso. A fake news continua ali, mas a vítima dela terá informações para embasar sua decisão sobre aquilo no que vai acreditar.
Quem vocês acreditam que fará oposição ao projeto no Congresso?
O projeto de lei está na pauta para ser debatido no Senado na terça-feira (2/6). Antes da votação, é difícil saber quem vai se posicionar frontalmente contra esse projeto, ainda mais visto o andamento da CPI das Fake News nesta semana. Pelo nosso monitoramento no Congresso, não temos como fazer essa afirmação publicamente.
Depois de muita pressão de autoridades na União Europeia e nos EUA, O duopólio Google e Facebook anunciou iniciativas com promessas de maior transparência e eliminação de conteúdos falsos. Falta maior comprometimento por parte das plataformas?
Falta muito comprometimento. Não é suficiente o que estão fazendo. Por exemplo, essa ideia de fornecer mais informações ao usuário quando ele for vítima de fake news. É comprovado cientificamente de que funciona e é viável do ponto de vista tecnológico. Quando a gente conversa com funcionários de alto escalão de Google, YouTube e Facebook, não há argumentos para dizer que isso não seja possível implementar esse tipo de ação imediatamente.
As pessoas não consomem só uma fake news. Se o algoritmo continua te recomendando cada vez mais desinformação, você acaba acreditando que aquilo ali é a realidade. Tua bolha cria a tua realidade.
Como são esses contatos com Google e Facebook?
Todas as vezes em que a gente produz relatórios que mostram as falhas das plataformas, fazemos um esforço de trazer as plataformas para o debate. A gente tem um viés deliberativo na Avaaz, sempre acreditando que as pessoas esperam e querem fazer o melhor. Há profissionais excelentes nessas plataformas, que têm todo o interesse em fazer o melhor trabalho. Agora, os tomadores de decisão dessas plataformas precisam colocar em prática o que organizações da sociedade civil estão trazendo para eles. As plataformas nos ouvem, porém, precisam começar a tomar atitudes mais concretas. Falta transparência e atitudes concretas.
A notícia falsa é muitas vezes mais sedutora do que a verdade. Obter a verdade, por meio do método jornalístico, também pode levar mais tempo. Esse descompasso entre a viralização da informação falsa e a checagem profissional é uma dificuldade no combate à desinformação?
Sem dúvida, esse é um dos maiores desafios. Por isso, é importante essa lei contra fake news. Se eu, há quatro dias, vi uma informação de que beber água sanitária mata o coronavírus e me engajei compartilhando essa fake news, o risco inclusive de esquecer esse engajamento depois desse tempo é gigantesco, embora a crença nele possa persistir. Cerca de 110 milhões de brasileiros acreditaram em pelo menos uma fake news a que foram apresentados, segundo nossa pesquisa. Se as plataformas de redes sociais tomarem a sério a medida que a gente vem apoiando, enviar uma notificação ao usuário de que uma correção de fatos sobre aquela fake news existe e mostra que é falsa, cientificamente a gente sabe que cai em 50% a chance de a pessoa continuar acreditando naquela noticia. É um jeito que você tem de mitigar esse delay entre a publicação da fake news e a correção de fatos. As plataformas têm como saber o que seus usuários estão vendo e consumindo nas suas redes por meio da inteligência artificial. Elas sabem que você viu aquela fake news, têm total tecnologia de simplesmente lhe enviar uma notificação dizendo: “Olha, aquele conteúdo que você viu, temos informações de que é falso. Clique aqui para mais informações”. Entende-se que muitos dos conteúdos talvez demore um pouco mais, porém, as redes sociais têm total capacidade de alertar os usuários imediatamente.
A gente vê o quanto o algoritmo é tóxico. Há engenheiros do Google e do YouTube que hoje em dia não trabalham mais nessas plataformas que viraram ativistas porque conhecem esse problema do algoritmo, sabem que existe tecnologia para tirar as pessoas desse buraco negro. Precisa de legislação que faça essas empresas trabalharem nesse sentido.
O que vocês querem dizer quando usam a expressão “desintoxicar o algoritmo”?
Significa basicamente que todas as vezes em que esses conteúdos de desinformação forem comprovadamente falsos, que as plataformas deixem de recomendar, tirem esse conteúdo do sistema de recomendação dela. Ela não vai deletar o conteúdo, não há censura. Porém, deixa de promover aquela desinformação, tira de seus algoritmos. É um detox. Com ele, você diminui drasticamente o alcance das fake news. Um exemplo: houve um caso de uma adolescente de 14 anos, aqui no Reino Unido. Ela tinha indícios de depressão quando começou a procurar conteúdos sombrios no Instagram. Não satisfeito em recomendar esses conteúdos, o Instagram começou a sugerir inclusive perfis que incentivavam o suicídio. E ela infelizmente tirou a própria vida. Os pais dela disseram que, mesmo depois a morte dela, o Instagram continuava enviando notificações de conteúdos que incentivavam o suicídio. Aí a gente vê o quanto o algoritmo é tóxico. Há engenheiros do Google e do YouTube que hoje em dia não trabalham mais nessas plataformas que viraram ativistas porque conhecem esse problema do algoritmo, sabem que existe tecnologia para tirar as pessoas desse buraco negro. Precisa de legislação que faça essas empresas trabalharem nesse sentido.
Sem falar na publicidade direcionada, que muitas vezes se aproveita das emoções expressas nas redes sociais.
Existe uma curadoria do que o usuário vai ou não ter acesso nas suas redes de acordo com o algoritmo. Claro que tem o lado positivo: recomenda um amigo, uma página interessante. O lado sombrio disso é formado por atores maliciosos, que se utilizam dessas brechas do algoritmo para levar as pessoas a consumirem esse tipo de conteúdo. Você acaba ficando em bolhas de desinformação, ou bolhas de conteúdo de ódio. Por isso, a gente fala em campanhas de desinformação. As pessoas não consomem só uma fake news, elas vão sendo realmente tomadas por esse sistema em todos os seus perfis. Se o algoritmo continua te recomendando cada vez mais conteúdos de desinformação, você realmente acaba acreditando que aquilo ali é a realidade. A tua bolha acaba criando a tua realidade.
Até poucos anos atrás, ações de ONGs como Greenpeace ou WWF eram protestos reais, concretos, com faixas, ocupação de navios baleeiros ou fábricas poluidoras. Como são as ações da Avaaz, que são mais no plano virtual?
Por sermos uma organização global, a missão da Avaaz é fazer com que o mundo seja como a maioria das pessoas sonha. A gente acredita que as pessoas são muito mais parecidas do que diferentes entre si. A campanha contra a desinformação começou logo depois das eleições de 2016 nos EUA. Ficou evidente que as fake news tomariam uma magnitude muito importante nas nossas democracias, com risco de dilacerar os tecidos sociais. Desde então, a gente montou equipes para certas eleições. Em 2018, monitoramos a desinformação na corrida eleitoral do Brasil. Liderei esse time. Mapeamos uma rede de desinformação no Facebook que tinha mais de 70 páginas e grupos de perfis falsos que manipulavam mais de 12 milhões de seguidores. Ali entendemos o impacto que a Avaaz poderia ter.
Como atuavam esses grupos e quais eram seus interesses à época?
Essa rede tinha um viés bem específico: espalhar desinformação contra o PT e outros partidos políticos para favorecer Jair Bolsonaro. Quando a gente começou esse projeto, não tínhamos a intenção de identificar redes de um lado específico do espectro político. Foi o que a gente encontrou. E o que temos visto no Brasil são grandes campanhas de desinformação que vão muito além de uma mera notícia falsa. São verdadeiras máquinas.
É estruturado?
Sim. Há muito dinheiro envolvido nas campanhas de desinformação, há pessoas poderosas por trás. É algo muito bem organizado. E não necessariamente são só políticas: há campanhas de desinformação para beneficiar um produto ou uma empresa. Por isso a gente precisa regulamentar as plataformas de redes sociais.
Em 2018, monitoramos a desinformação na corrida eleitoral do Mapeamos uma rede de desinformação no Facebook que tinha mais de 70 páginas e grupos de perfis falsos que manipulavam mais de 12 milhões de seguidores. Essa rede tinha um viés bem específico: espalhar desinformação contra o PT e outros partidos políticos para favorecer Jair Bolsonaro. Ali entendemos o impacto que a Avaaz poderia ter.
Há uma apropriação do termo fake news por líderes que acusam veículos de comunicação profissionais de espalharem notícias falsas. São informações verdadeiras, porém, que contrariam seus interesses. Essa confusão proposital criada por essas pessoas prejudica o combate à desinformação?
Sem dúvida. É uma tática bem inteligente e maléfica: você acusa outros daquilo de que você está sendo acusado. A imprensa tem sido muito atacada, o que é trágico para qualquer sociedade. Para combater isso, em primeiro lugar, é preciso continuar fazendo com que a verdade, os fatos venham à tona, dar mais acesso à informação verdadeira. Por isso, é importante o envio de correções. A desinformação se combate com informação e educação. Fatos salvam vidas.
E quando a notícia falsa serve a algo mais específico? No caso do jornalista Willian Bonner, por exemplo, alguém incluiu o CPF do filho dele no cadastro de pessoas beneficiadas pela ajuda do governo na pandemia. Foi algo que deu base para se espalhar uma fake news.
Foi um método, mas talvez pessoas que estejam por trás dessas campanhas tenham interesse muito mais a longo prazo. Quando a gente fala de desinformação, temos de olhar sempre o macro. Tem o combate no micro, no específico das fake news, e tem o efeito de magnitudes gigantescas no contexto social, com interesses mais profundos. Quando a gente olha experiências internacionais de regulamentação dessa indústria, na União Europeia, por exemplo, as próprias lideranças do parlamento sabem que sequer se chega perto do que precisava ser feito. As plataformas precisam agir, falta atitudes concretas. Se no âmbito europeu está claro que a autorregulamentação não funciona, por que iria funcionar no Brasil ou nos EUA? Por isso, a gente precisa olhar a desinformação de forma mais sistemática.
Com todos esses desafios, você é otimista ou pessimista em relação ao mundo pós-pandemia?
Otimista. A gente tem, como humanidade, a chance de construir o mundo em que a gente acredita. As fragilidades escancaradas dos sistemas de saúde no mundo, do sistema econômico e de segurança alimentar e renda, foram tapas nas nossas caras. A pandemia nos mostrou nossos problemas de forma mais evidente. Precisamos aprender com eles para construir um futuro melhor. As gerações que estão vindo já são mais ligadas e engajadas em fazer o mundo melhor. Isso é um bom indicativo de que, a longo prazo, as coisas vão melhorar.