"A memória da frase reapareceu nítida", diz o narrador. "A criança de sete anos permanece adormecida dentro de você para sempre, assim como o adolescente de 13, o jovem de 22, o quase adulto de 35, o adulto de 51, o velho de 72. Súbito, eles acordam e mostram os dentes."
Em A Tensão Superficial do Tempo, que sai agora pela Todavia, todas as épocas da vida do protagonista criado por Cristovão Tezza convivem num caldeirão. No fluxo da narrativa, é como se toda a história acontecesse ao mesmo tempo e tudo custasse a sair do imobilismo, cada tentativa de avanço jogando tudo de volta para o passado. Um pouco como a história do nosso país.
— O Brasil não saiu do lugar, a sensação é essa — diz o escritor de 67 anos ao repórter. —Tive um momento de otimismo depois do Plano Real, achava que havia um processo civilizatório consistente. Depois a coisa foi caindo, caindo, até o bolsonarismo. É impressionante como a gente pode andar tanto para trás.
Ainda que não se resuma a um tratado político, A Tensão Superficial do Tempo é uma das primeiras obras literárias a encarar com propriedade o Brasil bolsonarista, que segundo Tezza funciona no livro como "um eco que atormenta a cabeça do Cândido", o protagonista.
Professor de química, acostumado à racionalidade universal das reações moleculares, o personagem se vê preso a uma realidade em que "todas as manhãs o sábio povo brasileiro consulta o WhatsApp para saber a quantas anda a Lei da Gravidade, se já foi revogada ou sofreu veto".
E vivendo sob os desmandos de um presidente que "não foi eleito pelos silogismos, senos e cossenos, cálculo integral, inteligência precisa, fineza política ou coração cristão", mas pelos "socos do gorila no peito peludo".
Na sala dos professores, um colega de Cândido comenta que a situação política tão desconcertante do país o levava a um estado de "paralisia argumentativa", o que ecoa um sentimento do próprio Tezza.
— Estamos num momento político absolutamente irracional. O choque do bolsonarismo foi tão grande porque ele sequestrou as premissas sobre as quais você conseguia discutir as questões de Estado, de sociedade, e qualquer sistema de referência pelo qual você conseguia entender o que está acontecendo — diz. — É uma coisa que não tem pé nem cabeça o tempo todo. Por isso é profundamente angustiante.
Bolha
Entre os docentes do cursinho onde Cândido trabalha, ainda há uma hoste bolsonarista, a professora Juçara. E o autor evita a armadilha de retratar a personagem como uma mera pateta.
— Eu tinha uma limitação de escritor, porque conheci poucos bolsonaristas — conta Tezza, rindo. — Você acaba convivendo só com a sua bolha. O que eu queria fazer era uma síntese do discurso que justifica o bolsonarismo, que joga com emoções primárias.
Ele se refere a um trecho em que se faz a defesa do armamento do cidadão contra um hipotético bandido que entra na sua casa e mata sua filha; ou "a defesa da família normal", nas palavras de Juçara, sem "deturpações globalistas", exigindo "a simples decência das coisas".
— Há um ano eu não poderia dizer essas coisas aqui e em lugar nenhum; agora eu posso — brada a professora direitista na ficção. — Eu não estou fazendo uma caricatura, não me olhe com esse jeito debochado, milhões de pessoas dizem exatamente o que estou dizendo agora.
O momento político é propício para explorar um tema já consagrado da literatura de Tezza, a dicotomia entre a racionalidade e a emoção. Um choque estrondoso que, aqui, se dá tanto no flá-flu brasileiro quanto na vida amorosa do protagonista.
Cândido passa todo o livro às voltas com amores do passado, muitos deles ainda fortemente presentes, e com paixões de hoje, estas carregadas de memórias. É uma equação que o professor de química nunca consegue decifrar.
— Eu tinha interesse na relação entre a objetividade concreta da matéria e a incapacidade dele de resolver questões emocionais, da sua vida pessoal — aponta o autor.
O tempo, digamos, real do livro se passa em coisa de 15 minutos, quando o protagonista se senta no banco de um parque para remoer a última desilusão. O resto é lembrança.
Uma habilidade oculta de Cândido, sua perícia como pirateador de filmes em torrent, se destina a agradar tanto as novas conquistas românticas como a própria mãe, uma octogenária viúva de militar que passa seus dias apertando play em filmes das mais diversas épocas, que o filho baixa e coloca num pen drive.
A tecnologia avançada desse mundo subterrâneo, assim, é usada para dar sentido à vida de uma anciã moralizadora — que tece pequenas críticas de uma banalidade muito real, comentando por exemplo que tal filme é só "bom para passar o tempo" ou fazendo julgamentos puramente morais sobre a vida dos personagens —, em mais uma das contradições temporais que o livro opera.
Não é a primeira vez que Tezza escreve explorando a técnica narrativa de agregar momentos separados num mesmo balaio — fez isso em seu livro anterior, A Tirania do Amor —, mas este soa como um comentário especialmente voltado à nossa insuperável imobilidade histórica.
A tensão superficial do título se origina de um conceito da físico-química, a fina camada que há sobre os líquidos que explica, por exemplo, como os insetos conseguem caminhar sobre a água. Ao relacionar a expressão ao tempo, Tezza elabora a ideia de algo que precisa ser rompido para que o futuro irrompa.
O escritor afirma duas vezes durante a entrevista que mantém sempre um pouco de otimismo, mas evita qualquer prognóstico político, tamanha a imprevisibilidade do governo ("faz uma semana que o Bolsonaro não dá declaração nenhuma, o que já é uma novidade absoluta, parece que estamos num outro país").
Por mais que estejamos de volta a um impasse que parecia superado, houve um aprendizado, afirma ele.
— Hoje o país sabe muito mais sobre si mesmo do que sabia 30, 40 anos atrás.
E diz confiar que vamos sair dessa crise. Uma vez que se rompa a tal paralisia.
"A TENSÃO SUPERFICIAL DO TEMPO"
- Preço: R$ 64,90 (272 págs.); R$ 39 (ebook)
- Autor: Cristovão Tezza
- Editora: Todavia