Por Fernanda Bastos
Jornalista, mestra em Comunicação (UFRGS) e CEO da editora Figura de Linguagem
Em 1994, entre os livros mais comentados nos Estados Unidos, estava A Curva Normal (The Bell Curve), do professor de Psicologia de Harvard Richard Herrnstein e do sociólogo Charles Murray. A obra buscava justificar, pela ciência, o corte de políticas de assistência social para os mais pobres. A dupla argumentava que não eram as condições de vida que determinavam a hierarquia social, mas a inteligência dos sujeitos que conduzia à riqueza ou à miséria. Amparado em testes de QI, tal estudo postulava que pessoas racializadas como brancas, por serem mais inteligentes, obtinham mais riqueza e se casavam com outras racializadas como brancas, naturalmente mantendo um QI elevado e a classe. A fama do livro foi catapultada pelo capítulo que garantia que pessoas racializadas como negras e amarelas eram geneticamente menos inteligentes do que as brancas, por conta da endogamia.
Em um cenário de discursos legitimados como esse é que a escritora Toni Morrison, em 1995, afirma que “o racismo pode até se apresentar de vestido novo ou com outro par de botas, mas nem ele, nem seu irmão gêmeo, o fascismo, são novidades ou podem fazer algo de novo”. Sua constatação era de que teorias racialistas – como as do cientista Cesare Lombroso e do médico Nina Rodrigues no século 19; ou de Hernstein e Murray no século 20 – integram um inventário de estratégias para manter as pessoas racializadas como brancas no domínio do discurso que naturaliza a desigualdade. Criar um inimigo para explorar seu trabalho e negar-lhe educação e quaisquer políticas de emancipação são alguns dos passos que Toni Morrison descreve como sendo etapas em direção à sólida edificação de um sistema econômico que oferece sonhos no entretenimento e limites à liberdade em todos os outros campos, inclusive da arte.
No ensaio Racismo e Fascismo, que é extraído de discurso citado, a autora alerta sobre esses gêmeos que se entranham nas democracias, abrigados na ilusão do poder de consumo. Como ela evidencia, para a instalação dos gêmeos bastam 10 passos, os quais destaco, por talvez serem familiares a nós, a criação de um inimigo interno e a demonização de todas as formas de expressão artística.
O ensaio O Corpo Escravizado e o Corpo Negro é também oriundo de um discurso, realizado em 2000 no Museu do Holocausto Negro na América, e faz uma reflexão sofisticada sobre os efeitos da racialização e seu combate. Como sugere o título, a autora distingue corpo negro de corpo escravizado, enfatizando que a escravização não é uma exclusividade da história do povo negro, enquanto a racialização é um aspecto distintivo de nossa existência diaspórica que vem sendo utilizada para explorar e desvalorizar o corpo negro e cercear seus direitos.
O museu de que fala Morrison foi idealizado por James Cameron, que faleceu em 2006, deixando um legado de dedicação à memória. Inspirado por uma visita ao Museu do Holocausto em Israel, Cameron reuniu, em 1995, fotos, documentos e objetos que contavam a história de sobrevivência de homens, mulheres e crianças durante os 400 anos de escravização e pós-abolição, quando a perseguição foi encarnada por organizações civis como a Ku Kux Klan. O próprio Cameron era sobrevivente de um linchamento, sofrido quando ele tinha 16 anos e que resultou na morte de outros dois jovens. O compromisso de preservar a memória, combater o silêncio e impedir a infantilização do outro, inventariando as estratégias de sobrevivência do povo racializado como negro, mobilizou a empreitada de Cameron e também a de Morrison, que morreu em 2019, aos 88 anos, deixando um museu literário fundado em alicerces estéticos perenes.
Porque os gêmeos racismo e fascismo continuam na moda, o discurso de Morrison dificilmente poderia ser ignorado. Nos Estados Unidos, um supremacista branco chegou à Presidência mobilizando o passado idealizado de manutenção pela força dos privilégios de quem enriqueceu explorando o trabalho escravo ou de quem gostaria de enriquecer por esse meio em nossos dias.
O texto de Toni Morrison é um atestado de seu compromisso político com a memória e os direitos humanos. Tendo narrado a experiência de existir em meio à opressão e à violência, nesses breves ensaios a autora comprova que já possuímos estratégias para desnaturalizar as narrativas opressoras e impedir ações que tornam o fascismo e o racismo hegemônicos. Sua obra ensaística, assim como a ficcional, integra um enorme e valioso inventário emancipatório.
Racismo e Fascismo e O Corpo Escravizado e o Corpo Negro foram reunidos pela editora Companhia das Letras em um e-book disponibilizado gratuitamente em lojas virtuais.