Com a morte de Toni Morrison, não se perdeu apenas a “primeira mulher negra a ganhar um Nobel” (e, no caso da literatura, até hoje a única). Essa é a parte “listas de variedades” de sua biografia, aquela da qual todos falam e que tem lá sua cota de validade para estabelecer algumas hierarquias no fluxo cada vez mais descontrolado do universo da informação. A questão aqui vai além.
A morte de Toni Morrison é o fim de uma personalidade e de um talento gigantescos. Seus livros eram ficção escrita em uma prosa de um refinamento desconcertante, polifônico, com vozes de personagens que em poucas frases se delineavam como um perfil nítido diante do leitor. Sua prosa era enganosamente límpida. Nem sempre direta, nunca tortuosa. Mas seus livros são também mais do que isso. São obras que avançam pelo campo da sociologia, da história, da filosofia, e tudo isso mantendo a clareza, a dicção honesta e necessária, sem um pingo de afetação (o que é particularmente impressionante para um leitor no Brasil, país em que muito já se confundiu beletrismo com literatura; torneios retóricos com o ideal do belo; vocabulices parnasianas com uma frase bem feita). Toni Morrison encerrou sua trajetória tendo deixado para trás uma obra que transforma seus leitores – razão pela qual você aí que ainda não a leu deveria lê-la. Para ontem.
Toni Morrison nasceu no Estado de Ohio em 1931. Tinha 88 anos e morreu após uma breve e fulminante doença sobre a qual sua família não se estendeu em detalhes. Ela estreou relativamente tarde na literatura, aos 39 anos. Antes de publicar seu primeiro livro, escrito nos breves momentos de tempo livre entre criar seus dois filhos e trabalhar como editora na Random House, foi professora, tendo dedicado suas pesquisas acadêmicas a William Faulkner. A convivência com a obra do escritor sulista rendeu frutos maduros. Morrison retirou de Faulkner a estrutura labiríntica e barroca, as vozes fortes, e usou essa estrutura para algo completamente novo que, no entanto, já estava bastante atrasado na literatura americana: fez a crônica histórica da presença do negro nos EUA. Não uma história, com viés acadêmico, mas a história de vidas negras afetadas pelas marcas da escravidão e de suas consequências na contemporaneidade.
Seu primeiro livro é um dos mais dilacerantes trabalhos sobre a pressão miúda do cotidiano sobre a vida de mulheres negras desde a infância. Em O Olho Mais Azul (1970), a menina Pecola vive uma vida dilacerada com uma família problemática.
É a vida das meninas negras como ela, o que a leva a pedir a Deus que a faça ter olhos azuis, os olhos daqueles para quem tudo se torna mais fácil no mundo lá fora. Em Amada, uma brutal narrativa situada no passado que tem muito pouco do romance histórico tradicional, Sethe é uma jovem que foge para um Estado em que a escravidão foi abolida, mas carrega, além das marcas do próprio passado, a relação complicada com suas duas filhas, uma delas nascida praticamente durante a fuga, e outra morta por ela própria para não sofrer uma vida de servidão. Esse é um paradoxo presente na maioria de seus livros, aliás, uma ironia que não é cruel, mas perplexa: que caminho seguir quando tudo o que se conhece é ódio e exclusão. Como curar feridas que não têm rosto em rostos que foram por tanto tempo (e ainda são) invisíveis?
Toni Morrison é uma autora transformadora porque seus livros são escritos com a força da realidade. Não são histórias de fadas. São gritos para leitores apaziguados demais com a ideia equivocada de um mundo “normal”. Faria bem ouvi-los.