Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
Jean-Noël Fabiani é médico, chefe do departamento de cirurgia cardiovascular do Hospital Europeu Georges Pompidou em Paris e professor de História da Medicina na Universidade de Paris-Descartes. Autor de muitos livros, foi também um dos primeiros cirurgiões do programa Médicos Sem Fronteiras.
Num tempo no qual o binômio saúde-doença domina todas as atenções, catalisa energias e serve tanto para justificativas e ignominiosas omissões de responsabilidade, seu livro A Fabulosa História do Hospital – Da Idade Média aos Dias de Hoje é, ao contrário do que se poderia imaginar, uma leitura agradável e até divertida.
Em linguagem acessível, Fabiani nos lembra das associações da palavra hospital a sua origem no latim medieval. Hóspede, hospedeiro derivam de hospes, daí também Hospitale, que gerou o francês “hospital” (hoje hôpital). Da mesma vertente, hospitalidade, hospitaleiro e hospício. Abreviando, de hospital para hostel, hotel: uma hospedaria que de início servia para abrigar peregrinos, para mais tarde se tornar depósito humano de mendigos, incômodos desafetos, prisioneiros, idosos, doentes e loucos. Miseráveis, marginais.
Partindo do primeiro Hôtel-Dieu de Paris, o “albergue de Deus”, do ano 651, o autor parece querer puxar a brasa para o seu escargot, privilegiando passagens francesas nessa longa trajetória da evolução no cuidado em saúde. Mas é fato inequívoco que até quase meados do século 20 era a França que ditava grande parte do que se pode classificar como moderna medicina ocidental. A transformação gerada pela Revolução Francesa, que retira o poder dos religiosos na administração dos hospitais e no encargo daqueles “hóspedes”, culmina na iniciativa de Napoleão em selecionar médicos por concurso público para cuidar dos militares feridos, o que promove uma aproximação com a academia e um ensino mais programático da Medicina. Mudou, também, o perfil dos pacientes: até então, qualquer um que tivesse posses seria tratado em casa.
A vivência pessoal do autor, sua formação profissional e os desafios da carreira enriquecem a obra com episódios nos quais não falta bom humor, sem descuidar olhares críticos. Um bom exemplo é a referência ao excessivo papel da indústria farmacêutica na formação do conhecimento médico, por omissão institucional e social, o que gera conflito de interesses e onera o sistema de saúde.
Há também questões relacionadas à arquitetura hospitalar, dissociações entre necessidades e praticidade, contrapondo razões sanitárias e veleidades estéticas. Entendo que possa haver nisso, talvez, um novo equívoco de interpretação na origem da palavra, confundindo as atuais concepções de hotel e hospital. Um viés que serve, também, com não rara e lamentável frequência, a certos alvos da Justiça, particularmente os envolvidos com falcatruas políticas que buscam nos hospitais um providencial refúgio temporário.
São muitos os ensaios interessantes e singulares: opondo-se a desígnios bíblicos, a Rainha Vitória torna-se garota-propaganda do parto sem dor; Madame Lafarge, descendente bastarda da Casa de Orleans, suspeita de envenenar o marido com arsênico, serve de inspiração para a Bovary de Flaubert; a trágica paixão que fez adoecer Ernest Duchesne e atrasa o uso da penicilina em cinco décadas; o devido respeito a uma senhora de peitos fornidos e a lembrança de um brinquedo da infância levam Laennec à invenção do estetoscópio, o mais icônico instrumento médico; o intrépido Jamot se dispõe a acordar um continente adormecido pela mosca tsé-tsé... Aprende-se com a narração de sucessos e fracassos até esse novo tempo de estranhamento.
Entre tantas histórias, as de outras pandemias, com destaque à Grande Peste. Fabiani conta que, por ordem do papa Inocêncio VII, em 1233, em meio à Inquisição, os gatos deveriam ser eliminados por suas “notórias” relações de servidão ao diabo e à feitiçaria. Estima-se que a peste bubônica transmitida por ratazanas asiáticas tenha feito 25 milhões de vítimas em cinco anos, 30% a 50% da população ocidental à época. Desconhecimento, ignorância do poder e crenças infundadas: a escassez de gatos certamente não foi a única causa, mas eles fizeram muita falta nos portos de então.
No momento em que deveria ser ainda mais desejável não se necessitar de um hospital, cabe a indicação de um bom livro como recurso terapêutico, para ser lido de preferência em seguro distanciamento social.