No momento em que a ascensão de populismos e autoritarismos assombra democracias, Timothy Snyder estabelece conexões entre as realidades russa, ucraniana, europeia em geral e norte-americana em particular para entender como chegamos a essa esquina da História. Um dos palestrantes do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento 2020, o historiador especializado em Europa Central e Oriental, professor da Universidade Yale, autor da famosa obra Sobre a Tirania, entre outros livros, e membro do Comitê de Consciência do Museu Memorial do Holocausto, nos Estados Unidos, percebe como governos autoritários aproveitam-se da pandemia para fortalecer seu poder.
Nesta entrevista, ele reflete sobre a Europa que emergirá da crise sanitária, destaca as fragilidades da democracia norte-americana, cujas veias abertas estão expostas durante a campanha eleitoral para a Casa Branca, e salienta como o jornalismo de qualidade pode ser antídoto contra a epidemia de desinformação, capaz de erodir a democracia.
Desde a Segunda Guerra Mundial, a Europa tem sido pressionada por interesses de EUA e URSS (agora, Rússia). Com o isolacionismo do governo Donald Trump, o Brexit e a pandemia, que exacerbou divisões entre nações do norte e do sul europeus, como o continente emerge da crise do coronavírus?
A Europa, assim como a União Europeia (UE), parece ter se saído bem durante a pandemia. A democracia na UE, a liberdade de imprensa, a livre-expressão e princípios democráticos, de forma geral, foram muito bem. Muito melhor do que em países como Rússia, Brasil e Estados Unidos. Até mesmo os europeus reconhecem que a UE teve uma experiência positiva nesse período. Em pesquisas recentes, 62% dos europeus disseram que o coronavírus é uma razão para que a integração do continente continue. É uma questão interessante, porque a pandemia foi o primeiro momento em que a UE teve de lidar com uma grande crise com a total ausência dos EUA. Ou em que teve de lidar com uma grande crise em que os EUA estavam desempenhando ativamente um papel negativo. Mas a UE foi bem. Nesse contexto, gostaria de mencionar também outros países, ditaduras à margem da UE nas quais, em parte por causa do coronavírus ou por protestos populares, pareceram estar à beira de transformar seus regimes autoritários em alguma outra coisa, quem sabe em democracia.
Há governos que questionam a democracia liberal como única forma de exercício de poder. O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, por exemplo, fala em “democracia iliberal”. Vladimir Putin defende que seu governo é uma democracia, quando, na visão ocidental, é um regime sem liberdades. Há outro tipo de democracia possível, além da liberal? Ou classificar de iliberal a democracia é uma das formas de esconder o autoritarismo?
Quando falamos de democracia também estamos falando de direitos individuais. Apenas votar não cria democracia. Há vários exemplos na história em que se vota, mas não se tem uma democracia no sentido que se entende hoje. Em geral, quando você coloca um adjetivo na frente da (palavra) democracia, não estamos realmente falando de democracia. Na prática, para o voto das pessoas ter sentido, elas precisam saber o que está ocorrendo ao redor delas. Isso requer princípios de liberdade que costumamos chamar “liberais”.
Políticos populistas e nacionalistas, como o ex-vice-primeiro-ministro italiano Matteo Salvini, saíram de cena. O premier de Israel, Benjamin Netanyahu, teve dificuldades para fechar acordo e continuar no poder. O parlamento da Hungria retirou os superpoderes de Orban na pandemia. Donald Trump está atrás de Joe Biden nas pesquisas para a eleição nos eua. A onda nacionalista-populista foi um hiato histórico ou veio para ficar?
O que chamamos de populismo chegou aqui para ficar e ficará conosco enquanto houver globalização. A mágica dessa coisa que chamamos de populismo é que ele encara a globalização: há um líder que diz a sua população que a globalização não é um desafio, que é algum tipo de ameaça pessoal, ou de algum outro grupo ou de algum país. E assim convence muita gente. Mas não significa que ele tenha vencido. Um papel positivo que o populismo tem exercido é obrigar a fazermos um esforço para se pensar o futuro. Populistas geralmente imaginam algum tipo mítico de passado em que tudo foi bom. Se você tentar derrotá-los falando do passado, você perde. Se você constrói uma visão de futuro, estará falando uma linguagem diferente, então você vence. É o que estamos vendo, por exemplo, nos EUA.
O senhor destaca em seus textos que a internet teve papel na ascensão do populismo, muitas vezes utilizando-se de fake news. Uma vez que o controle da internet também seria algo negativo, como acredita que as pessoas podem usá-la para fortalecer a democracia?
Usar a internet para fortalecer a democracia significa utilizá-la para encorajar os cidadãos a fazer algo no mundo físico. Se você usa a internet para encorajar as pessoas a ficar na frente de telas (de computadores, smartphones, tablets), você provavelmente estará ferindo a democracia. Se você está usando a internet para mobilizar as pessoas a protestar ou a votar, então estará fazendo algo positivo.
Populistas geralmente imaginam algum tipo mítico de passado em que tudo foi bom. Se você tentar derrotá-los falando do passado, você perde. Se você constrói uma visão de futuro, estará falando uma linguagem diferente, então você vence.
Em alguns parlamentos europeus, movimentos xenófobos saíram fortalecidos de eleições. Também é possível observar, de tempos em tempos, manifestações neonazistas em vários países. O senhor acha que, em algum momento, movimentos extremistas terão força suficiente para voltarem ao poder?
É improvável que um movimento neonazista chegue ao poder em algum país europeu. O que acho mais preocupante é que, no tempo presente, fascismo ou discursos nazistas estão perdendo seu estigma histórico e entrando no mainstream. O que estamos identificando são partidos de extrema-direita que em um determinado momento falam uma linguagem que soa fascista e, em seguida, negam o que realmente estão fazendo. Temos um estranho tipo de retorno do fascismo onde todos negam que há fascismo, mesmo que algumas das ideias certamente tenham voltado.
O senhor alerta sobre o perigo da releitura histórica: no Brasil e em outras partes do mundo, há movimentos que defenderam que o nazismo era de esquerda. Como avalia isso?
A questão não é saber se é de esquerda ou de direita, isso é um pouco irrelevante e geralmente usado para atacar alguém. No meu próprio país, Trump costuma dizer que o fascismo é de esquerda, o que é um tanto estranho. O mais importante é entender o que estava errado em relação ao nazismo. O que aconteceu na Alemanha nos anos 1930 pode servir para criticar qualquer político, de diferentes ideologias. O importante é garantir que nosso entendimento da história da Alemanha nazista esteja correto, em vez de usar a palavra toda vez que discordamos de alguém. Para mim, o que é crucial sobre a história da Alemanha nazista, que devemos recordar: ela usou a linguagem para excluir ou degradar cidadãos; ela criou zonas nas quais as leis não eram aplicadas, como campos de concentração; ela tratou o mundo como lugar com recursos a serem explorados; ela tinha uma ideia clara de que a terra existia para ser consumida em vez de preservada; ela partiu da premissa de que algumas pessoas eram pessoas de verdade e outras não eram humanos – e, portando, serviam para ser exploradas ou destruídas. A lista poderia continuar, mas o que quero dizer é que o importante é o que a Alemanha nazista era de fato, e não se a chamamos de esquerda ou direita.
Antes da pandemia, havia protestos em várias regiões – na América latina, na Catalunha, na França, no Oriente Médio. Embora com diferentes motivações, o que os unia era a revolta contra a desigualdade e o fato de a globalização não ter atingido a todos. Essas manifestações voltarão?
Acredito que o tema da desigualdade social irá continuar conosco não apenas porque a pandemia sozinha tornou a desigualdade objetivamente pior, mas também porque ela deixou a desigualdade social mais visível.Nos EUA, particularmente, dá para dizer quase com certeza que os protestos irão continuar.
O senhor escreveu no jornal The Washington Post que o que se vê em Belarus é um preâmbulo do que observaremos em novembro, nos EUA, caso Trump não aceite o resultado das eleições. Como o senhor analisa as falas de Trump, que questiona a lisura do processo eleitoral norte-americano, dizendo, por exemplo, que haverá fraude nos votos pelo correio? Há risco de ele não reconhecer o resultado?
É importante dizer claramente que o que Trump está fazendo não é comum em uma campanha eleitoral. Ele tem dito inúmeras vezes que não irá aceitar o resultado das eleições, se perder. Então, os EUA estão em uma zona muito estranha. A questão interessante é se mais alguém apoiará Trump. Ele não tem poder sozinho de atrasar a eleição ou de não reconhecer os resultados. Ele não tem esses poderes. O único caminho seria se outros grupos de dentro do governo ou de fora o ajudassem. Acho que, se grupos de dentro ou de fora do governo não o ajudarem a criar caos, estará bastante claro que saberemos os resultados e estes serão aceitos por todos. O importante é que provavelmente vamos querer saber os resultados no dia, mas levaremos alguns dias ou até semanas para conhecê-los, e não há problema nisso.
O senhor disse ao jornal El País, de Madri: “Os bielorrussos nos ensinam o que eu chamaria de ‘os seis P’s’ da defesa de uma vitória eleitoral contra o caos autoritário: preparação, predominância, protesto, paz, persistência e pluralismo”. Essa regra pode ser aplicada a outros países que têm a democracia ameaçada?
Claro. Quando escrevi sobre Belarus, eu estava falando sobre todos os países. Meu ponto com relação aos bielorrussos é que estejam dispostos a se defender de ditaduras. É que, quando se tem o voto roubado em qualquer lugar, há táticas que podem cair bem. É importante não ficar surpreso, ter seu plano pronto, olhar para o futuro. Então, sim, minha ideia sobre os 6 Ps pode ser muito bem aplicada em qualquer lugar.
O que Trump está fazendo não é comum em uma campanha eleitoral. Ele tem dito inúmeras vezes que não irá aceitar o resultado das eleições, se perder. Então, os EUA estão em uma zona muito estranha. A questão interessante é se mais alguém apoiará Trump.
O senhor acompanha a política brasileira e o governo Jair Bolsonaro? Que imagem o senhor acha que o Brasil tem hoje perante o mundo?
Não posso dizer que imagem o Brasil tem hoje no mundo porque não estou em todas as partes. Nos EUA, as pessoas pensam nele (em Bolsonaro) como uma versão de Trump, mais radical, ou uma versão sulista de Trump.
Já vemos países brigando por vacina contra o coronavírus. Houve episódios semelhantes com relação a respiradores. O senhor é pessimista ou otimista em relação à ordem mundial pós-pandemia?
Não sou nem pessimista nem otimista. Como historiador, acho que o futuro é em geral mais aberto do que imaginamos – para o melhor ou o pior. Gostaria de pensar que a pandemia nos ensinou lições sobre solidariedade, que poderíamos usar para reforçar a ideia de democracia.
O senhor afirma em seus livros que matanças não aconteceram em virtude da existência de misteriosas máquinas industriais, mas porque pessoas mataram outras pessoas. Qual o papel da ação pessoal na destruição da democracia?
Democracia não pode sobreviver sem ação pessoal. Democracia significa o papel das pessoas. Então, se elas não quiserem exercer seu papel, não se terá democracia. A tendência natural, como todos, dos gregos em diante, compreenderam, é de se afastar da democracia em favor de alguma forma de oligarquia ou tirania. Isso significa que os indivíduos devem ver a si mesmos como atores na história, cujas escolhas fazem diferença em geral. Se perdermos o senso de atores na história, também perderemos nossa democracia.
A internet fez nos esquecermos de nossas habilidades humanas. Quando a gente pensa o mundo somente a partir do que ocorre nas telas, a gente esquece regras básicas da biologia, com suas evidências da natureza.
O senhor afirmou em entrevista ao El País que, como sociedade, nos permitimos estar alienados do mundo que nos cerca, alienados da natureza. “O fato é que somos animais e, como tais, estamos expostos a contrair doenças. Se nos esquecermos disso, nos sentiremos vulneráveis”. O desenvolvimento tecnológico, a internet, nos levaram a esquecer que somos seres humanos vulneráveis a vírus, por exemplo?
A internet fez nos esquecermos de nossas habilidades humanas. É impressionante pensar como quanto mais as pessoas estão expostas à internet mais tendem a ficar vulneráveis a viroses no mundo real porque o que elas aprendem tende a não ser verdade, infelizmente. Há outras conexões. Quando a gente pensa o mundo somente a partir do que ocorre nas telas, a gente esquece as regras básicas da biologia, com suas evidências da natureza.
Em países cujos líderes negaram a realidade do vírus, observamos a explosão dos casos de coronavírus: EUA, Brasil, México e, em alguma medida, Índia. Há alguma relação?
Claro. Temos agora um tipo de líder autoritário que ganhou não apenas mentindo, mas negando a verdade. E uma vez que se negue a verdade, o vírus será um inimigo muito perigoso. Só que negar a verdade pode confundir as pessoas mas não pode confundir o vírus. Então, há conexão direta entre uma postura autoritária e o coronavírus.
O senhor se preocupa muito com o jornalismo. Qual acredita que deva ser hoje o papel do jornalismo com respeito à manipulação?
A coisa mais importante que o jornalismo deve fazer é criar fatos. É importante para os jornalistas não apenas reagir à informação, mas gerar novos fatos. Especialmente, no nível local. Claro que os jornalistas têm de reportar quando há algo falso, deixar claro quando líderes não estão dizendo a verdade. Mas acho que o papel fundamental do jornalismo é criar factualidade ao redor das comunidades, de forma que, mesmo que tenhamos diferentes valores, possamos ter os mesmos fatos. A democracia é feita para lidar com diferenças entre valores; é difícil para a democracia lidar com diferenças entre fatos, e é aí que entram os jornalistas.