Por Felipe Pimentel
Historiador e psicanalista
"Uma história de perda é, portanto, uma proposta de restauração." Essa frase de Timothy Snyder poderia ser sobre um indivíduo – ou sobre uma civilização. Ela está no epílogo de seu livro mais recente publicado no Brasil, Na Contramão da Liberdade, coletânea de artigos escritos entre 2011 e 2016 sobre as ameaças globais à democracia (seu livro mais recente, Our Malady, já está disponível em inglês).
Snyder une-se a um grupo extenso de intelectuais contemporâneos – como Madeleine Albright, Yuval Noah Harari, Manuel Castells, Yascha Mounk, Steven Levitsky, Daniel Ziblatt e David Runciman, para citar alguns – que buscam analisar, por diferentes vieses e métodos, por que, como e o quanto a democracia liberal está ameaçada. Snyder, professor de História em Yale, por óbvio, traria a análise e a sua abordagem para as circunstâncias e exemplos históricos.
Profundo conhecedor e estudioso dos totalitarismos de esquerda e de direita que devastaram o mundo – o nazismo alemão e o socialismo soviético –, tendo dedicado grande parte de sua obra a analisar como tais regimes se montaram (destaque para o belo e duro Terras de Sangue: a Europa Entre Hitler e Stalin), Snyder traz ao debate público mais amplo as lições que a História dramaticamente ensina às democracias.
Muito hábil em traduzir o pensamento para o debate atual, Snyder realizou essa tarefa de modo direto e objetivo em Sobre a Tirania: 20 Lições do Século XX para o Presente, no qual apresenta, em tom imperativo mesmo, sugestões, conselhos ou lições históricas que deveríamos aprender para defender a democracia. Elas circulam entre as (tão necessárias!) ações de investigar as fontes, contribuir para boas causas e o bom jornalismo ou defender as instituições. Para fundamentar cada uma delas, Snyder (em uma espécie de Maquiavel às avessas) busca exemplos históricos que demonstram quando as coisas correram mal naquele campo e se perderam, degenerando em tiranias.
Em Na Contramão da Liberdade, o professor, munido de centenas de fontes históricas e atuais – com a peculiaridade de dominar cerca de 10 línguas do leste europeu, o que lhe dá um acesso privilegiado a fontes primárias em russo, ucraniano, polonês e tcheco, por exemplo –, apresenta a concertação global contra a democracia liberal ocidental, que envolve, entre tantas outras ações, o governo russo e suas escusas intervenções na política norte-americana. Para além dos fatos, das correlações e da contundência analítica que Snyder traz, mais relevante e instigante ainda é sua interpretação da guerra de narrativas que subjaz a crise contemporânea. De um lado, a política da inevitabilidade, a narrativa histórica linear, aparentemente vencedora em 1989-1991, que acredita que determinado sentido da história é inevitável e certo, isto é, que a democracia, a prosperidade material e o capitalismo liberal estão fadados a prosperar. Desse modo, nada podemos fazer, pois o destino de aperfeiçoamento social é inexorável e definitivo. De outro, a política da eternidade, uma narrativa circular que crê que as ameaças históricas sempre retornam, e que o máximo que podemos fazer é esperar os salvadores do governo que vão nos precaver do desastre maior.
Ambas transformam fatos em narrativas e desprezam a História, dado que numa ela é inevitável e na outra ela é imutável. E os indivíduos terminam desresponsabilizados, pois num caso, eles nada podem fazer para alterar a história e noutro são somente vítimas diante das ameaças sempre recorrentes.
Por isso, como afirma Snyder, é preciso “ressuscitar a História”, resgatar os aprendizados do passado para tornar a enxergar o que acontece ao nosso redor no presente e resistir às ameaças à democracia: razão pela qual a ideia de restaurar algo que foi perdido pode falar aos ouvidos de um só indivíduo – ou de todos nós. “Ver o nosso momento é nos afastarmos das histórias contadas para nos entorpecer – mitos de inevitabilidade e eternidade, progresso e ruína. A vida está em outra parte.”