Ela sabe o valor do descanso, do sono, do sonho, do tempo de qualidade com a família, do exercício físico, das refeições feitas com calma. Conhece, igualmente muito bem, a diferença entre produtividade, procrastinação e ineficiência por exaustão.
A psiquiatra e neurocientista cearense Natália Mota, pesquisadora do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e do Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que, às vezes, mais vale parar o trabalho para praticar cinco minutos de meditação do que perder meia hora em frente ao computador tentando avançar em um texto trancado. É fundamental que cada um conheça seu próprio corpo e seus limites.
Com a pandemia do coronavírus e a implementação abrupta do teletrabalho para muitos, a médica sugere uma revisão das rotinas e novas posturas em nome da saúde mental. Natália conta que não trabalha muitas horas por dia nem por longo período ininterrupto, mesclando sempre essas tarefas com o contato com os filhos.
– Você não pode negociar a sua saúde – alerta.
O sono é um dos seus temas de estudo. Muitos reclamam de alterações na rotina de repouso desde o início da pandemia: dificuldade para adormecer, sono interrompido, dormir demais. Quais as razões para isso?
Acredito que seja muito por conta de uma desregulação do ciclo sono e vigília. O corpo precisa da sinalização de um hábito do momento em que vai descansar e do momento em que está em atividade. Normalmente, tínhamos fatores do dia a dia que ajudavam muito a sinalizar quando era o momento de levantar e o momento de serenar. Quando a pessoa tem um trabalho ou tem que deixar filho na escola, ela tem hora para acordar, sem amplas variações, e mantém também a hora para dormir. Isso faz com que o corpo se acostume, sempre que chega aquele horário, a se preparar hormonalmente. Em geral, as pistas ambientais que ajudam a maioria das pessoas a se sincronizar são esses compromissos que elas assumem lá fora. O momento de estar em casa é de assumir as funções domésticas. Essas rotinas também incluem a luz natural, um sinalizador extremamente importante de que aquele momento do dia é de atividade. Quando você tem esse ciclo funcionando direitinho, aumenta o cortisol um pouco antes do despertar e aumenta a melatonina um pouco antes de dormir. Isso mantém o corpo em um ciclo acoplado com o dia. Com o distanciamento social, boa parte das pessoas perdeu vários dos seus sinais que sincronizam com esse ciclo do dia. Perderam as atividades externas, os horários fixos de trabalho, muitas perderam o trabalho mesmo, as atividades escolares dos filhos, ou os cuidados com as pessoas em casa se tornaram cada vez mais intensos. Uma bola de neve, um acúmulo de atividades, que ficam desorganizadas e fragmentadas ao longo do dia. Quem é disciplinado não precisa de conselho, mas a maioria das pessoas não é disciplinada, então elas perderam também a referência da hora de comer, de dormir, de trabalhar etc. Muitas pessoas começaram a trabalhar pelas madrugadas, a despertar mais tarde porque não tinham hora para acordar… Crianças também começaram a se sincronizar mais com o ritmo noturno dos pais, arrastando atividades da escola para um pouco mais tarde ou para horários irregulares. Com o tempo, acaba que a gente começa, inconscientemente, a negociar os nossos períodos de descanso para fazer atividades produtivas ou não. Uma dessas atividades não produtivas é gastar muito tempo em redes sociais.
Sim! Muito.
O que mais me deixa triste é isso. Tem muita gente que está sendo explorada no trabalho nesse sentido e que está passando muito tempo disponível para o trabalho remoto por ter essa sensação de “já que estou em casa, estou disponível”, mas mais pessoas ainda têm o problema de gastar essas horas preciosas de sono e repouso estimulando o cérebro, ininterruptamente, com redes sociais. Perdendo tempo no Instagram, no Facebook ou mesmo em filmes na Netflix.
É uma conexão ininterrupta: muito tempo na frente do computador, aí, quando sai, pega o celular… Quando é hora de dar um basta e desconectar?
É preciso ter um limite, entender o corpo. Não tem uma marca de horas nem uma média possível para a maioria das pessoas porque isso é muito variável. O que é mais importante aqui é ser sincero e honesto com os próprios sinais do corpo e aumentar essa introspecção. Quando você sentiu que deu, ou pouco antes de sentir, não faz mais. O exercício físico é extremamente importante, tanto para sinalizar para o corpo o momento de atividade quanto para reoxigenar a mente, levando-a para outro lugar. Muitas vezes, a gente se sente cansada e não sabe nem o que fez. “Passei o dia inteiro aqui, tô morta de cansada, quero só ver um filme.” A intenção é superboa, “quero só ver um filme”, mas é uma péssima ideia para o seu cérebro naquele momento, muitas vezes porque você vai dar ainda mais estímulo visual quando ele deveria estar serenando.
Quando nossas relações passam a ser mediadas pelo virtual, isso impacta demais no nosso ciclo de atividades e repouso. Em vez de ter as relações de trabalho, amizade e familiares mediadas pela presença, a gente começa a fazer isso por meio das tecnologias virtuais, o que amplia a quantidade de estímulos artificiais ao cérebro.
Mais uma tela.
Mais uma tela. As telas eletrônicas têm uma luminosidade que impacta diretamente na produção de melatonina, hormônio que sinaliza a hora de dormir. Esse hormônio precisa desse ciclo, desse hábito de sono regular, mas também precisa não ser inibido por determinadas luminosidades. É como se você sinalizasse para o centro de produção que ainda é dia com essa luminosidade. Esse é o grande desafio dos adolescentes. Eles tendem, naturalmente, a dormir mais tarde e a acordar mais tarde. Que eles fiquem acordados até 1h da manhã, mas que saibam a que horas o sono vem, naturalmente, e que uma hora antes disso eles não vejam telas. Senão isso vai inibir os hormônios que são fundamentais para entrar nesse estado de relaxamento e promover o sono de qualidade.
Então o importante é ter marcadores de “fim” – de trabalho, de estudo, de outras atividades – não eletrônicos.
Perfeito. Como é que a gente sai dessa sinuca de bico? Primeiro: entender a própria fisiologia. Estabelecer um horário de dormir e de acordar. E, dentro desse horário em que você está desperto, ser disciplinado com horas de alimentação, de trabalho e de exercício. O exercício físico é um ótimo sinalizador de atividades. Se você puder acoplar exercício e acesso à luz natural no início do dia, é o ideal. Isso não vai funcionar no primeiro, no segundo, no terceiro dia. Não. Isso vai funcionar como hábito. Se você tiver o hábito, principalmente, de fazer exercício prazeroso, melhor ainda, com acesso à luz natural. Abre a janela, faz um alongamento, faz uma ioga. Ou dá 10 pulinhos, que seja, começa a pular corda em casa.
Comecei a pular corda na pandemia! Antes não sabia.
Olha, que legal! Muita gente pensa em atividade física como melhoramento da potência do próprio corpo, melhoramento do balanço de massa muscular e gordura, emagrecer. Não, não é para isso. É para você oxigenar o seu cérebro. Se você quiser mais produtividade, melhor foco, melhor clareza para entender as situações, é importante que o cérebro consiga perceber os estímulos reais do ambiente, sem ser toda hora bombardeado por estímulos artificiais como os das telas. A gente está transferindo essas pistas do que é real e do que é concreto para um ambiente totalmente virtual. Quando as nossas relações sociais passam a ser mediadas pelo ambiente virtual, isso impacta demais no nosso ciclo de atividades e repouso. Em vez de ter essa pista social das relações de trabalho, amizade e familiares mediadas pela presença, a gente começa a fazer isso por meio das tecnologias virtuais o tempo inteiro, o que amplia a quantidade de estímulos artificiais ao cérebro.
É importante você ter disciplina com você mesmo. Isso é um sinal de autocuidado. Você não pode negociar sua saúde. Seu corpo tem limites. Muitas vezes, o burnout é só a ponta do iceberg. Está indicando que você passou dos limites, mas a pessoa pode ter passado dos próprios limites lá atrás e nem se tornou consciente disso. O importante é começar a entender, a ler melhor os sinais.
Nos últimos meses, ficamos um pouco sem saída, não é mesmo? Com tantas restrições de deslocamento, muitas pessoas foram obrigadas a mergulhar no virtual. Mas, em muitos casos, é escolha. Há quem troque uma tela por outra sem parar ou use mais de uma ao mesmo tempo.
O segredo não é não fazer. A mensagem não deve ser: não se deve fazer isto. Porque é impossível. A gente precisa dessas tecnologias hoje em dia. O segredo é se tornar consciente do quanto isso afeta você. Se isso está afetando sua produtividade, se você sente aquela sensação de dependência dessas tecnologias ou mesmo uma “ressaca” de celular – “Não aguento mais olhar para isso!” –, precisa ler isso no seu corpo: “Não aguento mais, tenho que fazer um intervalo”. Trazer para o consciente também como estão distribuídas as horas em que você está desperto. Quanto tempo você passa ao telefone? Durante quanto desse tempo ao telefone você está realmente produzindo ou interagindo com alguém? Quanto tempo você realmente precisa estar nessas interações?
É bem provável que não seja tanto assim (risos).
Não é? É preciso produzir mais e procrastinar menos, então tem que tirar essas horas de Netflix (risos).
Qual é a importância de sonhar?
O sonho é uma realidade virtual que montamos com as nossas próprias memórias e que tem função de simular futuros possíveis. Esses futuros, muitas vezes, são desafios que precisamos enfrentar. Desafios que têm a ver com a nossa saúde, a nossa integridade, mas também desafios sociais. Muitas vezes, temos que ajustar novas formas de convivência social com pessoas que são mais ou menos importantes na nossa vida. Olhar para o sonho dá muitas pistas de como você está, internamente, processando essas memórias que vão acontecendo no dia a dia. Na pandemia, várias pessoas passaram, como eu passei também, por novos arranjos familiares, perderam entes queridos, enlutaram, perderam empregos. Tiveram que ultrapassar essas dificuldades de uma maneira que, às vezes, exigia bastante criatividade. O sonho é uma máquina produtora de criatividade que vai dar soluções que você não chegaria a pensar conscientemente. Mas é um exercício de interpretação que só faz sentido quando é vivenciado em primeira pessoa. Um sonho faz sentido, sim, como oráculo, mas para o próprio sonhador. O ingrediente para montar esse ambiente virtual é a própria vivência do indivíduo.
Alguns dizem que não sonham. Não sonham ou não lembram?
Uma pequena parcela da população pode ter prejuízos em algumas estruturas neurais que inibem o sonhar, mas isso é raríssimo. A maioria sonha mas não lembra porque não presta atenção ao sonho. Muitas vezes, quando despertamos, rapidamente nos levantamos da cama e começamos a fazer outras coisas. Essas memórias do momento em que estávamos de olhos fechados são memórias fáceis de serem perdidas. E o hábito de despertar devagar e ir tentando, conscientemente, voltar àquela lembrança e puxar o fio é extremamente importante. Por isso que escrever o relato do sonho ou recontá-lo para alguém ou para um gravador é importante como exercício para seu cérebro e para sinalizar que aquela memória deve ser relatada. Ao relatar, já trazemos uma elaboração do que vivemos. Isso gera a consolidação dessa memória. Você passa a dar importância para esses eventos e a lembrar cada vez mais e com mais detalhes.
Pesadelos também podem ser benéficos?
Podem. Normalmente, os pesadelos são metabolizações de assuntos de aspecto negativo, que trazem emoções difíceis de serem incorporadas no nosso banco de memórias. É importante olhar para esses assuntos, sim, e tentar buscar de onde a gente está mimetizando esse desafio. Muitas vezes, um pesadelo sinaliza algum temor ou desafio com que você está angustiado e terá que enfrentar em um futuro próximo. Mas, muitas vezes, ele é metafórico, cifrado. Então, é importante que o próprio sonhador entenda quais são os ingredientes que levaram àquele produto final, de onde está surgindo aquela sopa de memórias. Nos sonhos, conseguimos experimentar esses desafios de uma maneira mais ou menos atenuada. Tem uma neutralização do afeto, por isso podemos lidar com coisas que são mais difíceis de serem vivenciadas. E é por isso mesmo que são uma janela de oportunidade muito grande para você observar, de uma maneira segura para o seu cérebro, que aquilo ali foi um evento traumático, que aquilo ali precisa ser recontado para você mesmo, que precisa ser enfrentado.
Li uma entrevista em que você descreve uma “epidemia de burnout”. Pode falar mais sobre isso?
O burnout é um conjunto de sinais e sintomas que sinalizam que você está em um esgotamento de produtividade. Muitas vezes, vem com muitos sintomas de ansiedade e de humor também, principalmente quando já é um processo mais crônico. É comum as pessoas ficarem com o coração mais acelerado, mais nervosas, suando quando têm que assumir um compromisso de trabalho ou pensar em fazer alguma coisa que já fizeram mas estão completamente esgotadas daquele recurso. Isso está acontecendo muito agora, nesta situação de pandemia, em que várias pessoas migraram para o desafio do trabalho remoto. A pessoa assume o compromisso de ter horas de trabalho, mas essas horas ficam ininterruptas e avançam pelas madrugadas, pelos fins de semana, sem respeito ao descanso. Isso pode ser deletério a longo prazo.
O conceito de teletrabalho é muito novo no Brasil. Vejo que falta um entendimento de que os funcionários não estão à disposição o tempo todo, e o fato de estarem em casa não os torna disponíveis para receber mais tarefas ou responder ao celular fora do expediente.
Por isso que é importante você ter essa disciplina com você mesmo. Isso é um sinal de autocuidado. Você não pode negociar sua saúde. Seu corpo tem limites, e, muitas vezes, o burnout é só a ponta do iceberg. Está indicando que você passou dos limites, mas a pessoa pode ter passado dos próprios limites lá atrás e nem se tornou consciente disso. O importante é começar a entender, a ler melhor os sinais. Olhar mais para si mesmo. Praticar exercícios físicos, meditar, fazer as refeições de maneira consciente, cozinhar o próprio alimento, tudo de uma maneira concreta, palpável, presente, é extremamente construtor dessa noção introspectiva do que é a sua fisiologia, sua saúde.
Você aborda um conceito interessante, o da “cultura da exaustão”. Do que se trata?
Sou militante disso! Sou aberta à cultura da eficiência, não da exaustão. A cultura da exaustão acaba com a saúde, aumenta as vulnerabilidades daquelas pessoas que já estão em situação socioeconômica de vulnerabilidade. As pessoas premiam aqueles que acreditam que são mais produtivos porque passaram mais horas dedicadas ao trabalho. Isso se choca com a ideia de eficiência. Ser eficiente não é exaurir todos os seus recursos e entregar qualquer resultado. É priorizar a sua saúde e entregar um resultado com qualidade, no tempo que aquele resultado precisar ser entregue. Hoje em dia, passamos por um sistema de exploração de trabalho que é extremamente cruel porque as regras não estão claras. Nos sentimos chamados para um esquema de trabalho em que temos de estar disponíveis a toda hora, já que temos todas as facilidades tecnológicas. Isso, na verdade, não gera dados de maior qualidade. Isso gera mais ruído. As pessoas acabam entregando qualquer coisa e achando que são produtivas porque estão ali, de pé, e aguentam uma grande quantidade de horas acordadas ou em simulação de uma atividade, enquanto que, em boa parte dessas horas, elas não estão funcionando, estão só vegetando, como zumbis, olhando e repetindo o mesmo procedimento. O importante, para a produtividade, é a eficiência, e para ter eficiência é imprescindível ter saúde mental. Não tem como você ser eficiente e produzir se não tiver foco e concentração naquilo. E, para você ter foco e concentração, precisa estar com a mente limpa, organizada, presente naquele momento para aquela atividade, e com as outras situações do corpo em dia também.
Sinalizar esses limites pessoais não é uma fraqueza, não é feio, não é mesmo? Deveríamos ter mais tranquilidade para poder dizer “estou fora do meu horário de trabalho”, “agora não posso, me liga amanhã”.
De forma alguma! É um compromisso com a qualidade do resultado. As pessoas deveriam falar isso mais abertamente. “A essa hora, se eu te disser que posso fazer isso, vou entregar um resultado de má qualidade porque não estou mais conseguindo. Preciso descansar. Quando eu estiver descansada, posso fazer isso com mais qualidade para você.” É fisiológico. Se você tentar fazer uma atividade que exige concentração sem ter a menor condição de ter essa concentração, precisando dormir, vai gastar quatro horas para fazer algo que poderia fazer em meia hora se estivesse mais descansado. É questão de otimizar esse tempo e de respeitar os próprios limites. Mas, para isso, você precisa primeiro entender os seus próprios limites.