Por Norton Cezar dal Follo da Rosa Jr.
Psicanalista, doutor em Psicologia Social (UFRGS), membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
Reconhecer as nossas humanidades requer o cuidado com a vida, o respeito aos mortos e o direito ao luto. Apesar da obviedade da afirmação, curiosamente são valores que precisam ser lembrados. Especialmente, em tempos de radicalizações, falta de empatia pelo sofrimento alheio e ódios, que parecem situar o esfacelamento da virtude política, torna-se imprescindível zelar pela dignidade humana em suas pluralidades.
A covid-19 expôs de forma dramática, além da falta de preparação para a gestão da crise, os desafios para encontrar novas formas de solidariedade. Não é a primeira epidemia da humanidade, tampouco será a última. O que ela atualiza do mal-estar dessa época? As respostas são múltiplas, de modo que recorto apenas um aspecto dessa questão, presente desde o início da pandemia: a banalização da morte. Algumas imagens são ilustrativas, a começar pelas passeatas promovidas pelos defensores de que a economia não podia parar – ainda que já contássemos com milhares de óbitos – até a sua expressão máxima, quando, em plena Avenida Paulista, vimos várias pessoas dançando, cantando e sorrindo em volta de um caixão, convocando a abertura do comércio.
O meme do caixão encenado na Paulista fora inspirado em cenas de velório em Gana. Entretanto, desviou-se da proposta de valor e contexto sócio, ético e cultural à qual estava inserido. Naquela cultura, a dança era encenada como performance estética para celebrar a história de idosos reconhecidos por terem tido uma vida plena. Portanto, o que visava celebrar o respeito foi, perversamente, encenado para cultuar a morte.
A banalização da morte pode chegar a tal ponto de nos defrontar com teorias que insistem tanto em afrontar séculos de conquistas da ciência quanto em sustentar um mínimo de razoabilidade lógica. Nesse cenário, constata-se desde as certezas de terraplanistas convictos até negacionistas capazes de chamar de “gripezinha” um vírus responsável por matar milhões de pessoas em todo o mundo.
Apesar de reconhecer, em alguns casos, interesse em sustentar essa posição, em outros pode-se identificar a indiferença andando de mãos dadas com a ignorância. Entretanto, se tais afirmações são insuficientes, resta considerar os mecanismos inconscientes inerentes à negação. Conforme Clarice Lispector, na crônica A Lucidez Perigosa, o excesso de luz pode levar a ver claramente o vazio e deprimir. Ou seja, certa opacidade faz-se necessária para se lidar com o horror e tentar tocar a vida. Logo, não se trata de uma caça aos negacionistas, porém é importante refletir sobre as consequências de tais banalizações. Como ficar omisso diante de quase CENTO E VINTE MIL VIDAS PERDIDAS? Será possível recusar o valor da vida a ponto de ultrapassar os limites até então considerados sagrados: o cuidado com a vida, o respeito aos mortos e o direito ao luto? Reconhecer os sofrimentos das famílias que perderam seus amores não é somente compaixão e respeito, pois também uma forma de nos salvar dos escombros da indiferença. Quem já perdeu alguém que amava pôde sentir o rombo real que essa dor produz ao perdemos algo de nós mesmos no outro.
Freud apontou o estado melancólico como consequência das dificuldades simbólicas do sujeito para elaborar suas perdas. Mas como ter tempo para o trabalho de luto quando, além de ouvir discursos inflamados de que “a morte faz parte da vida, todo mundo vai morrer mesmo” e “chega de mimimi”, testemunham-se imagens de centenas de covas diariamente na televisão? Muitos familiares sequer tiveram a oportunidade de velar seus entes queridos, e menos ainda há possibilidade de constituir algum rito de despedida.
Não podemos prever os efeitos desse apressamento do luto. O tempo dirá. Aprendemos com Hanna Arendt, ao ler Eichmann em Jerusalém, que o mal habita tanto na incapacidade de pensar e se responsabilizar sobre os nossos atos como na resistência de se colocar no lugar do outro, fazendo-se objeto de uma engrenagem burocrática, mediante a servidão incondicional de apenas cumprir ordens.
Estar advertido em relação aos discursos que banalizam a morte e propagam a erosão do futuro é responsabilidade de cada um com o coletivo.