Por Robson de Freitas Pereira
Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa)
Atualmente, se há consenso sobre alguma coisa, é o seguinte: vivemos tempos de incerteza. Quem não tem dúvidas está mal situado. Ainda não temos um medicamento comprovadamente eficaz para a covid-19 e, na melhor das hipóteses, uma vacina só estará disponível no final do verão, no ano que vem. Acrescentemos que, na dimensão econômica e sociopolítica, as angústias não são menores: recessão, empregos faltando, desocupação crescente, crianças e adolescentes fora da escola. Some-se a isso as notórias dificuldades do Executivo nacional de mostrar empatia e compaixão com a população que o elegeu, neste momento de crise sem precedentes. Quando pensamos em nosso futuro imediato, as dúvidas persistem: depois de quase cinco meses tentando não se contaminar e proteger os outros mais próximos, reconhecemos que não há garantias. E, quando a situação mudar, teremos de fazer adaptação a um mundo diferente, onde uma divisão insiste.
Não é preciso ser especialista para fazer as constatações listadas acima. Elas constituem parte do nosso cotidiano, intensificado pela pandemia. Além disso, se há uma coisa que a psicanálise nos ensina é a impossibilidade de prever o futuro ou mesmo profilaxia do mal que nos espreita. A psicanálise contribui para nossa cultura inserindo uma forma de escuta singular, abrindo espaço para os sons e a multiplicidade de vozes que povoam nossa existência. Fazendo essa ligação entre o que nos é mais íntimo e aquilo que rege nossas relações com os outros e o mundo. A invenção de Freud nos possibilita reconhecer algumas impossibilidades. Uma delas: eliminar completamente o mal-estar da cultura. Esse mal-estar passa por três pilares básicos:
- Nosso corpo – Ameaçado pelos perigos invisíveis de um vírus, sujeito ao envelhecimento e desgaste
- A natureza – Que nestes tempos mostra sua força com tempestades, abalos sísmicos, degelos onde se pensava que as neves eram eternas e, mostrando que pode fazer combinações biológicas que fogem a qualquer possibilidade de controle;
- Nossa relação com os outros, talvez a mais perigosa e difícil de lidar porque nela se evidenciam a riqueza e a miséria de nossa civilização
Entretanto, reconhecer os limites abre possibilidades, desde que possamos levar em consideração algumas condições; pois não há desejo com base na incondicionalidade. Por exemplo: adaptar-se a uma realidade não quer dizer acomodação e subserviência voluntária. Em termos de pandemia, a repetida expressão “estamos em guerra” é precária para abranger toda a complexidade envolvida. A começar pelo fato que trata-se de um vírus que não reconhece declarações humanas.
Uma das consequências é fazer com que os inimigos sejam buscados em “nossas próprias fileiras”. Isso é fonte de angústia. Passamos a desconfiar de nós mesmos e dos outros; isto mais atrapalha do que ajuda a diminuir os efeitos da peste. A insegurança angustiante pode ter como consequências culpabilidade e depressão por considerar infinita a extensão da crise. Simultaneamente, possibilita intensificar a desconfiança que implica atos impulsivos e acusação aos outros que não conseguem acreditar em curas milagrosas. Assim, enxergar o outro como diferente e não como inimigo poderia abrir espaço para que a contaminação e as milhares de mortes pudessem deixar de ser só uma estatística. A indiferença perderia tamanho, afinal, meu vizinho, o parente de um amigo ou mesmo pessoas que me importam foram atacadas/infectadas. Por sorte, alguns escaparam. Mas o sofrimento foi grande. Isso que não estamos falando da violência urbana, que deixa outro rastro de sangue marcando retinas e memórias.
O que nos faz lembrar que, neste tempo de distanciamento social, deixamos de ocupar as ruas, mais um pouco. Hoje, vivemos um paradoxo: para muitos, sair à rua é uma irresponsabilidade, mais ainda se for sem máscara (que, diga-se de passagem, é para proteger os outros de uma possível contaminação. Quantos de nós sabem disso?). Por outro lado, aqueles que acreditam que a doença é resultado de uma conspiração e que a cura acontecerá por milagre bastando força de vontade ou fé em seus líderes religiosos ou políticos sentem-se impelidos a defender publicamente suas crenças, ou seja, nas ruas.
Ora, cidadania é apropriar-se do espaço público para uma convivência com os que consideramos semelhantes e, também os diferentes. Manifestações somente de grupos defendendo interesses identitários empobrecem a vida da pólis, pois não permitem uma verdadeira apropriação de nosso patrimônio histórico e cultural.
Na verdade, a incerteza também aponta que o futuro não está decidido. A saída depende de como enfrentamos o medo e arriscamos ser mais solidários, reconhecendo fragilidades e potencialidades nesta aventura na realidade contemporânea.