No alto de uma colina encarapitada nos Montes Cárpatos, fiéis com velas nas mãos ingressam na capelinha de madeira, entoando cânticos eslavos. Em meio à miscelânea de palavras cheias de consoantes e abundantes em Y e Z, é possível distinguir expressões universais, como Maria e Yesu (Jesus). O rosto do Papa João Paulo II é onipresente em retratos na igreja – sorridente em algumas poses, preocupado e orando com mãos sobre o rosto em outras. Eis que a condutora do ritual introduz o terço com um pedido, em polonês, mas que reflete um anseio planetário nesses tempos assolados pela peste:
– Modlmy sie o Wylecznenie covid-19 (dziewietnascie).
Em bom português, “rezemos pela cura da covid-19, pelo fim dela”.
Amém (que assim seja), respondem os fiéis, para usar uma palavra e um desejo expresso da mesma forma em latim, em polonês ou em português.
O cenário poderia ser europeu, nas profundezas de uma Polônia arraigadamente católica e rural, mas é o interior do Rio Grande do Sul, em algo que se repete no último domingo de cada mês. Montes Cárpatos é uma comunidade localizada numa região de morros em Santo Antônio do Palma, município serrano situado a 240 quilômetros de Porto Alegre. Leva no nome uma homenagem à poderosa cadeia de montanhas que se estende por 1,5 mil quilômetros no leste europeu, entre Polônia, Romênia, Ucrânia, Eslováquia e República Tcheca.
Ali, numa região de matas fechadas e lavouras abundantes, fica um dos mais antigos redutos de descendentes de poloneses no Rio Grande do Sul. As novidades, neste verão, são duas: as rezas voltaram a ser feitas inteiramente no idioma eslavo, que andava esquecido pelos mais velhos e é desconhecido dos mais jovens. E as preces são, sobretudo, um pedido de socorro contra a pandemia que assola a humanidade.
Todo fim de mês os “polacos” (termo pelo qual os descendentes de poloneses são chamados pelos conterrâneos descendentes de alemães e italianos) rezam o terço, que é composto de vários Credos, Pais Nosso e Ave Maria. Natural, para quem tem origem na nação que proporcionalmente tem a mais numerosa população católica do mundo, a Polônia. Em outras épocas, há as novenas (nove dias seguidos de preces). Pedindo chuva ou contra o excesso de chuva, via de regra. Agora, com a covid-19, os cientistas e a vacina entraram em cheio no horizonte de orações.
– A fim de que sejam evitadas muitas mortes prematuras no mundo todo – resume Ágata Celeste Grochot dos Santos, uma das puxadoras do terço em polonês, durante o ritual.
– Para que os homens se unam acima de suas diferenças políticas, pela vacinação e pela cura – acrescenta Marta Revers, tia de Ágata.
O vozerio de homens e mulheres, idosos (a maioria) e jovens (alguns) ecoa pela igrejinha, repetindo as falas características do terço. Só que em polonês.
– Matka Boska Czestochowska, Modl Sie Za Nami (Nossa Senhora Czestochowa, rogai por nós)…
Como a oração indica, as preces se dão na capela Nossa Senhora Czestochowa, aquela toda ornamentada com representações do papa João Paulo II. Orgulho dos poloneses, esse Pontífice já era um ícone em vida para os católicos – e para os polacos em particular. Pós-morte, virou santo popular, muito antes do reconhecimento oficial de seus milagres pelo Vaticano. Sua fisionomia de traços fortes está emoldurada em cada casa de cada “polaco gaúcho”. Sobretudo em Montes Cárpatos.
Já Czestochowa, ou Matka Boska Czestochowska, é uma Virgem Maria diferenciada. É morena, apesar de cultuada por poloneses, cujo padrão comum é o loiro de olhos claros. A explicação: teria sido pintada por um dos apóstolos em Jerusalém. Ou seja, tem tez escura por ser do Oriente Médio.
Ao encontro do passado
O quadro de Nossa Senhora Czestochowa foi levado no início da era cristã para Constantinopla (atual Istambul) e, de lá, conduzido para a região onde fica a Polônia. Em 966, o país, ainda longe de ser uma nação, foi cristianizada quando o rei Mieszko I aceitou o batismo. Em 1966, os mil anos de cristianismo entre poloneses foram celebrados em todo o planeta, incluindo a cidade gaúcha de Santo Antônio do Palma, na época pertencente ao município de Casca. Os descendentes de imigrantes polacos decidiram construir um oratório para as famílias que moravam longe da sede ou de outras igrejas. Os fiéis doaram madeira e dias de serviço. Nascia a primeira capela de Nossa Senhora Czestochowa naquela região serrana.
Nessa pequena igreja foram rezadas missas e terços por muitos anos. Contudo, com o passar do tempo, o prédio foi se deteriorando, ainda que houvesse a dedicação de algumas poucas senhoras que traziam flores e vinham rezar na capela já velha. Alguns padres vindos da Polônia tentaram revitalizá-la, mas não foi suficiente. Então a igrejinha antiga foi desmanchada, e em seu lugar construída uma nova, inaugurada em 19 de agosto de 2018.
– Um promotor de Justiça, de origem polonesa, conseguiu madeira doada pelo Ibama. Tudo foi refeito – recorda o novo prefeito de Santo Antônio do Palma, Gilberto Szymanski.
Madeira de lei, bem entendido, envernizada contra cupins. Na sacristia, um dos tesouros: um globo torneado de madeira, oco, que se abre e dentro do qual podem ser colocadas orações litúrgicas e Bíblias.
A igrejinha virou ponto de romaria dominical para cada Babcha (vovó) e Jadek (vovô) da região. Gente como Natália Gregoreski, 88 anos, que no último terço, em dezembro, compareceu amparada por familiares. O andar está lento, mas a fé, “mais forte que nunca”, como ela diz:
– Não perco o terço. Me dá uma paz.
Os primeiros imigrantes poloneses da região de Casca e Santo Antônio de Palma chegaram em 1878. Embarcavam em navios desde a Alemanha e enfrentavam a longa viagem em busca de um futuro incerto.
Marta Revers, agricultora entendida em migração polonesa para o Rio Grande do Sul, ressalta que seu avô Alexandre veio para o Brasil com 11 irmãos, na segunda metade do século 19. Cinco morreram no caminho, antes se aquerenciarem no “novo mundo”. De Porto Alegre foram para Alfredo Chaves (atual Bento Gonçalves) e, depois, radicaram-se em Casca. Lá, conseguiram comprar lotes de terras em troca de serviço (ajudaram a construir a estrada que liga Bento Gonçalves a Passo Fundo, a RS-324).
– Ganharam lotes em 1919 e só receberam os papéis com registro de propriedade em 1950. Foram 31 anos de espera – destaca Marta, ao lembrar das dificuldades dos ancestrais.
Em Casca, fundaram escolas, capelas e associações de culto à cultura polonesa e ao catolicismo. A dedicação é tamanha que até pouco tempo atrás Marta era uma das locutoras da Hora Polonesa, na Rádio Seara. Por conta de seus esforços, foi enviada por um instituto cultural para uma temporada na Polônia. Voltou maravilhada e decidida a retomar na sua comunidade as tradições que vinham se perdendo com a morte dos idosos. Ela e a sobrinha Ágata relembraram cânticos, costumes. As casas das duas são repletas de livros, Bíblias, documentos e obras de História escritas em polonês. Tesouros guardados em baús.
Ágata mantém a Casa Polonesa Flores de Ágata. Como o nome indica, é um local de preservação da cultura original do país do Leste Europeu. Ela é especializada em lepianka, marchetaria feita em palha de trigo. Faz e revende. Sua casa, construída em estilo tradicional polonês, é colorida e ornamentada com pisanik (pinturas em madeira) e rafte (bordados tradicionais).
O pai de Ágata, que reside com ela, fala mais polonês do que português. E até o marido, que nasceu em Santos (SP), se obriga a entender um pouco da língua eslava. Quando se aperta na escrita, Ágata chama os filhos, que, mesmo mais jovens, dominam o idioma dos antepassados da família.
Os poloneses da região de Casca e Santo Antônio de Palma valorizam suas origens e não gostam de ser confundidos com outros povos eslavos, como os russos. Afinal, a Polônia viveu 130 anos sob ocupação estrangeira, disputada entre russos e alemães. As lembranças da II Guerra, quando o país foi arrasado e ocupado pelos vizinhos, persistem na memória dos mais velhos.
É uma mescla de dor e orgulho, pela retomada da nacionalidade e pela persistência do culto católico, mesmo quando esteve proibido pelo regime comunista soviético.
É com muita dignidade, portanto, que quatro famílias guardam as chaves da capela de Nossa Senhora Czestochowa. Um dos escolhidos para a missão é Tadeu Strieski, agricultor de cabelos e olhos claros, como a maioria dos descendentes. Cada vez que se anuncia um culto religioso, ele e a mulher, Zofia, dão uma passada na igrejinha, que fica perto da sua propriedade rural. Conferem se está tudo limpo, se o altar está em condições, se as fotos de João Paulo II continuam intactas, mirando seus interlocutores…
– Isso não é serviço, é uma missão. Me sinto bem quando entro lá. Meu dia fica melhor – diz Strieski.
O desafio de guardiões do templo, como Strieski, Ágata e Marta, é atrair os jovens para o cultivo das tradições. Não só pela fé, mas também pela preservação do idioma e de seus costumes, uma rara preciosidade neste Brasil multicultural.