Um dos mais conceituados integrantes da nova geração de pesquisadores brasileiros de relações internacionais, o mineiro Lucas Leite afirma que o novo presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, deve “resetar” a política americana, após quatro anos da era Donald Trump. Logo no primeiro dia, o democrata trouxe o país de volta ao Acordo de Paris sobre mudanças climáticas e à Organização Mundial da Saúde (OMS), desfez iniciativas restritivas sobre migrações, como àquelas que separaram crianças de pais na fronteira, e suavizou a vida de quem não consegue pagar a hipoteca devido a perdas com a pandemia. Doutor pela Fundação Santiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUCSP), Leite foi pesquisador visitante na Georgetown University (EUA), é autor de A Construção do Inimigo nos Discursos Presidenciais Norte-americanos do Pós-Guerra Fria (2013) e um dos apresentadores do canal no YouTube Em Dupla com Consulta, que se dedica a explicar, de forma divertida, a política global. Nesta entrevista, ele fala sobre o futuro do trumpismo e das perspectivas com Biden no poder.
Alguns analistas acreditam que o fato de Joe Biden ter sido vice de Barack Obama fará dele um presidente parecido com Obama, de quem, aliás, é muito amigo. Podemos pensar em uma administração Obama 3.0?
De fato, haverá muitas semelhanças. Os dois eram muito próximos no governo Obama, e Biden foi essencial para diversos temas de política externa. Ele atuou diretamente no acordo com o Irã e em outras temáticas relacionadas à Rússia. Era também um ativo importante nas negociações com o Congresso. Isso vai voltar de alguma forma, claro que em proporções diferentes, mas Biden leva em conta, dá importância às questões externas e tem conhecimento de como funciona a barganha congressual. Neste primeiro momento, o que imagino que aconteça, e os primeiros dias de governo demonstram isso, é uma normalização. É como se eles resetassem o que foi feito pelo governo Trump, revogando todos os decretos executivos que de alguma forma impeliam o país a agir no sentido contrário a posições tradicionais dos EUA. Houve o retorno ao Acordo de Paris (sobre mudanças climáticas), além de uma série de medidas relacionadas à migração e à economia. São medidas que mostram que há um caráter de proteção social garantido. Esse pacote inicial já mostra a política de reconstrução. Se a política de Trump foi de desconstrução, pouquíssimo propositiva e muito negacionista, de desfazer o que Obama fez, este será um governo de reconstrução institucional, na crença do papel do Estado para melhorar a vida das pessoas.
Como sustentar o discurso de união em um país dividido, no qual Trump teve mais de 70 milhões de votos?
Trump pode ter perdido a eleição, mas o trumpismo permanece forte. É uma narrativa, praticamente uma ideologia, que polarizou fortemente o país, e que hoje carrega em si uma deturpação de uma série de valores ligados às liberdades individuais, às questões da migração, de como se perceber americano. O trumpismo é uma crença baseada em uma alteridade negativa, na ideia de que o americano é predefinido, de que existe uma concepção dessa americanidade de antemão. Estamos falando de um retorno a um certo nativismo dos EUA, que é branco, protestante e anglo-saxão. Esse americano pertence a esse território e esse território pertence a certos americanos. Isso denota parte desse discurso de que a América estaria sendo roubada. Migrantes, muçulmanos, católicos, africanos, latinos, todos estariam ocupando um espaço que não seria deles. Há uma mitologia em torno da questão geográfica, da excepcionalidade, de uma nação destinada a liderar, a ser a melhor. Isso não é novo, é uma narrativa que já houve outras vezes. E carrega muita xenofobia e racismo. Por isso, também se conecta com supremacistas brancos, extremistas, fundamentalistas cristãos. Essa extrema-direita se sentiu legitimada pelo discurso de Trump. A classe média branca de certa forma perdeu na globalização: indivíduos que perderam empregos, que não conseguiram se manter atualizados, percebem os postos de menor qualificação migrando para outros lugares e países. Isso causa um desconforto e alimenta a ideia de que é necessário se fechar, se afastar da lógica das instituições internacionais, do multilateralismo.
Trump foi um instrumento, alguém que aproveitou esse descontentamento? Poderia ser qualquer outro líder?
Trump é sintoma. Ele, saindo ou perdendo os direitos políticos, não vai eximir outros de continuarem atuando na mesma frente. O senador Ted Cruz, que tem uma capacidade, uma eloquência dentro do Partido Republicano, tem a mesma pegada: uma narrativa negacionista, o uso constante de notícias falsas, aquilo que em geral a legenda tem percebido como plataforma para garantir eleitores, mas que é danosa à democracia e às instituições. Trump é mero instrumento, se percebermos que estamos vivendo um Zeitgeist, um espírito do tempo que coloca as democracias liberais em xeque: a democracia representativa, os direitos humanos, tudo aquilo que foi construído em torno de uma ordem liberal no mundo. Quando isso acontece na principal potência, justamente naquela que propagava esses ideais, que inspirou muitos deles, que formou os regimes que legitimaram essas normas no sistema internacional, percebemos que essa crise é mais profunda. Trump é um sintoma de um mal-estar da modernidade global. E também um propagador e um catalisador desse mal-estar.
O trumpismo é uma crença baseada em uma alteridade negativa, na ideia de que o americano é predefinido, de que há uma concepção dessa americanidade de antemão. Há uma mitologia em torno da questão geográfica, da excepcionalidade, de uma nação destinada a liderar, a ser a melhor. Isso carrega muita xenofobia e racismo. Por isso, também se conecta com supremacistas brancos, extremistas, fundamentalistas cristãos. Essa extrema-direita se sentiu legitimada pelo discurso de Trump.
Fala-se que Trump poderia fundar um partido, o Patriota. Há outras legendas nos EUA além de Democratas e Republicados, casos dos Independentes e dos Verdes, mas que não têm muita representatividade. Há espaço para outros partidos?
Em termos de projeção nacional ampla, acho muito improvável. Quando um terceiro partido ganha relevância e consegue alguma porcentagem de votos mais significativa, a história americana mostra que acaba tendo muito mais impacto na eleição entre os partidos Democrata e Republicano, atrapalhando um dos dois lados, do que efetivamente enquanto plataforma política possível, com capacidade de gerar, por exemplo, uma eleição à presidência. Além disso, o sistema tem muitas barreiras à possibilidade de entrada de novos atores, pois há as primárias, os caucuses, as indicações, a necessidade de confirmação nas urnas.
É um sistema que favorece o bipartidarismo?
Sim. Um sistema majoritário que destrói qualquer possibilidade de formação de um sistema amplo, multipartidário. O bipartidarismo é a essência do sistemas majoritários. O que é necessário para ser eleito nos EUA hoje: muito recurso, uma plataforma ampla e uma capacidade institucional. Estamos falando de muito dinheiro, da necessidade de uma grande rede de apoiadores, de pessoas engajadas em praticamente todos os lugares do país e de candidatos hábeis a serem eleitos para o Congresso nas bases. É extremamente improvável de acontecer com um terceiro partido. Nem com a força que Trump tem. Ele é um bilionário, mas enfrenta problemas financeiros, tem uma série de processos contra si. Ele precisaria de uma base muito forte, o que, em última instância, seria uma ameaça ao próprio Partido Republicano, porque é de lá que ele tiraria votos. Haveria um combate, e os republicamos seriam mais efetivos, teriam mais recursos e um engajamento maior.
Não seria saudável romper com o bipartidarismo, já que em cada agremiação há tantas facções, que às vezes desconfiguram as legendas? Bernie Sanders, por exemplo, parece não representar hoje os Democratas, que preferem um candidato de centro para concorrer à Casa Branca.
Na ciência política comparada, gosto muito do conceito de partidos faccionados porque mostram a realidade partidária para além da questão una, do partido como se fosse uma máquina unificada, fechada nela mesma. Seria a ideia de que, na prática, há muitos outros partidos dentro daquele partido. Os partidos Democrata e Republicano são ótimos exemplos disso. Isso pode até gerar problemas à medida que determinados grupos possam boicotar outros em um processo eleitoral, como aconteceu na eleição de 2016 em que os apoiadores de Bernie Sanders se recusaram a votar em Hillary Clinton. Quando se fala em mudar todo um sistema político, é preciso levar em conta os aspectos históricos, a tradição. Os americanos idolatram, colocam de forma mítica, como se fosse um experimento, a forma como eles organizaram o seu sistema. É uma tradição que vêm praticamente desde o começo do país e que quase se tornou algo como uma cláusula pétrea. Mas, claro, isso não existe. Pode ser alterado a qualquer momento no Congresso, com a anuência da Suprema Corte. Há propostas, nos EUA, para adoção de um sistema de representação proporcional, mais parecido com o que temos no Brasil. Mas mudar algo mais que bicentenário não é simples. Até porque esse sistema majoritário é extremamente elitista. Seria mais interessante para a democracia? Não sei, é difícil apontar. A questão principal é tentar diminuir esse elitismo muito forte, de classes políticas que detêm quase o monopólio do processo político do país. Só que essas classes acreditam que esse sistema serviria justamente para evitar que indivíduos como Donald Trump, demagogos e populistas, fossem eleitos...
Como se fosse um filtro.
Exato. Só que Trump não foi o primeiro e nem será último a ser eleito. Isso já aconteceu antes e pode acontecer novamente. Há falhas.
No discurso de posse de Biden não foram citados inimigos externos. Biden não falou de China, Rússia, questões geopolíticas importantes, o que mostra que, aparentemente, os EUA entenderam que uma série de elementos relacionados a sua segurança está ligada a condicionantes internas. Com Biden, já ficou muito claro que os grupos de terrorismo doméstico vão voltar a ser combatidos de forma mais enfática.
Neste ano, os EUA lembram os 20 anos dos atentados de 11 de setembro de 2001. Antes, os extremistas eram externos. Agora, são domésticos, como se viu na invasão do Capitólio?
No discurso de posse de Biden não foram citados inimigos externos, a lógica do fundamentalismo islâmico, o terrorismo internacional. Mostra que o foco agora é a normalização das relações internas, o apaziguamento no país. Biden não falou de China, Rússia, questões geopolíticas importantes, o que mostra que, aparentemente, os EUA entenderam que uma série de elementos relacionados a sua segurança está ligada a condicionantes internas. O terrorismo doméstico nos EUA data de séculos. Estamos falando de formação de milícias, que já existem há muito tempo, de grupos como a Ku Klux Klan, de supremacistas brancos que atuam de forma terrorista. As narrativas que o terrorismo doméstico usa para tentar legitimar suas ações têm respaldo de tempos em tempos. Com Biden, já ficou muito claro que esses grupos vão voltar a ser combatidos de forma mais enfática.
A mudança dos EUA, de um país isolado com Trump para um maior engajamento internacional com Biden, não é necessariamente positiva para o sistema internacional. Lembra a ideia dos americanos como “xerifes do mundo”. Os EUA podem voltar a ter uma atuação mais intervencionista?
O caráter intervencionista vimos, em certa medida, com Bill Clinton, Ronald Reagan, George Bush pai e Bush filho. Com Trump, houve o afastamento desse tipo de ação, com pequenas exceções, como o caso da morte do general iraniano Qassem Soleimani. A menos que haja uma crise muito grande, não imagino que Biden irá assumir custos grandes em termos de política externa por meio de intervenções, porque isso exigiria um engajamento muito forte dele com a população e com o Congresso. Atualmente, ele não pode desperdiçar capital político. Vai precisar fazer reformas internas, lidar com a crise doméstica, que é sanitária, racial, econômica e política. Estamos falando de crises sem precedentes ao mesmo tempo. Então, o que vejo é um esforço em fortalecer as instituições, o multilateralismo, em trazer a China para dentro do jogo da Organização Mundial do Comércio (OMC), para garantir que a Coreia do Norte e o Irã sigam determinados arranjos a partir da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).
Parece unanimidade, tanto entre democratas quanto republicanos, que a china é o grande rival estratégico dos EUA. Haverá diferenças de abordagem com Biden?
Vai mudar o discurso, na forma como os EUA se dirigem à China. O racismo empreendido por Trump vai ser deixado de lado e vai se assumir um tom mais diplomático, não necessariamente mais cordial, com os chineses. O embate, a visão de que são adversários, concorrentes na arena internacional, permanece forte. Biden inclusive sempre foi um defensor de medidas duras contra a China no comércio internacional. Determinadas práticas que a China usaria é provável que continuem sendo combatidas pelos EUA. Isso não muda. O que muda talvez seja a agenda entre EUA e China. Os direitos humanos não eram preocupação no governo Trump. Com Biden, recuperam o protagonismo nas críticas a certos países – como a China. Imagino que as negociações vão continuar e as bravatas, diminuir. Os EUA e a China sabem que eles precisam um do outro. Não há estabilidade no comércio e na economia quando os dois países estão desequilibrados.
Nas relações com o Brasil, muitos comparam o novo momento nos EUA com o período Jimmy Carter, que pressionou o país na questão dos direitos humanos. Biden deve fazê-lo na questão ambiental. Há paralelos?
Em parte, porque naquele período (1977 a 1981) falávamos de violações muito sérias aos direitos humanos. Não que hoje não sejam, mas estamos falando de um período ditatorial, de exceção, quando as violações aos direitos humanos empreendidas pelo governo brasileiro eram combatidas pela comunidade internacional. O Brasil foi muito pressionado por um retorno à democracia. E Carter assumiu os direitos humanos enquanto centrais em sua política externa. Talvez por isso a gente possa prever semelhanças, à medida que os EUA voltam a ter um governo mais moderado e progressista. Ao ignorar toda e qualquer medida relacionada às mudanças climáticas, o Brasil se isola. E deveria se colocar como protagonista na agenda do meio ambiente, o que foi impossibilitado pela recusa do governo Bolsonaro. Biden sabe, seu staff sabe, que Bolsonaro não tem simpatia por seu governo e que era um defensor das práticas negacionistas de Trump e que seu Ministério do Meio Ambiente é negacionista em relação às medidas necessárias para o combate ao aquecimento global. Isso tudo vai impactar na forma como os EUA enxergam o Brasil e na forma como negociam conosco. É provável que essas questões estejam conectadas, o que a gente chama de “issues linked”, ou seja que as temáticas sejam importantes em processos de barganha mais amplos. Há de fato a possibilidade de os EUA pressionarem para que adotemos medidas mais efetivas no combate ao desmatamento enquanto parte de acordos maiores.
O momento em que poderíamos nos sentar com China e EUA para tentar colocar termos melhores para o 5G no Brasil já passou. O Brasil ficou isolado, não tem parceiros e, com a saída de Trump, perdeu seu suposto aliado. O que fez com que também perdesse a capacidade de negociação.
Que outras formas de pressão podem vir?
A gente pode ter embargo a produtos comprados do Brasil, suspensão de importações, exportações dificultadas por barreiras fitossanitárias. Os EUA podem colocar como pré-requisito à entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCD) uma agenda ambiental efetiva. Acho improvável, mas também pode ocorrer a suspensão da possibilidade de viagens de determinados brasileiros, o congelamento de contas de determinadas pessoas, a exemplo do que ocorre com China, Rússia e Venezuela. Depende do que estiver em jogo. Essa é uma carta na mesa.
E quanto ao 5G: o Brasil seguirá pressionado pelos EUA a evitar a tecnologia chinesa?
Sim, isso sim, e neste momento ocorre uma pressão para que o Brasil volte atrás em determinadas declarações, que peça desculpas pelas bravatas de Ernesto Araújo e Eduardo Bolsonaro como medida para que a China possa exportar insumos adequados à vacinação do Brasil. O 5G, agora, não é mais uma questão de barganha. Nós perdemos essa barganha. Muito dificilmente poderemos retomar a barganha com EUA e China para tentar melhorar a oferta dos dois países em relação ao Brasil. O que ocorre é a pressão dos dois países. Da China, com a contrapartida do acesso às vacinas; dos EUA, se quiserem impor uma agenda ambiental mais dura para o Brasil. É muito provável que falem: “Olha, não existe 5G conosco sem isso”. O momento em que poderíamos sentar à mesa com os dois para tentar termos melhores para nós já passou. O Brasil ficou isolado, não tem parceiros e, com a saída de Trump, perdeu seu suposto aliado. O que fez com que também perdesse a capacidade de negociação.
Que sinais podem ser dados pelo Brasil aos EUA? O tom da carta de Bolsonaro a Biden, parabenizando-o pela posse, foi mais ameno.
O que o Brasil faz agora é tentar reconstruir as relações fingindo que aquilo nunca existiu. É um apagamento total, bem orwelliano. Uma tentativa desesperada de um governo que não tem rumo. Não temos uma política externa, uma definição de objetivos em termos de política internacional. Não há a busca por uma melhoria da posição do Brasil no cenário internacional. Não houve a garantia dos interesses brasileiros frente aos demais parceiros, a criação de alianças efetivas, e isso diz respeito a tudo: às questões com China, América Latina, Europa, EUA, Oriente Médio. Com a própria Índia também. O Brasil ofendeu muitos países, algo que historicamente nunca aconteceu. Esse talvez seja o maior feito do atual ministro de Relações Exteriores do Brasil: criar um paradigma novo, de completa exclusão do Brasil enquanto ator relevante no cenário internacional. Vai ser necessário muito mais do que cartas amenas para mudar isso.