Por Peter Hakim
Presidente emérito do think thank de análise política Inter-American Dialogue, sediado em Washington (EUA)
A viagem do então vice-presidente Joe Biden ao Brasil durante a Copa do Mundo de 2014 tinha um objetivo: reestabelecer relações normais entre os países. Os laços entre EUA e Brasil haviam sido abalados pela divulgação, um ano antes, de espionagem norte-americana sobre a presidente Dilma Rousseff, o que levara Dilma a cancelar uma aguardada visita a Washington. Estava posta a fissura em uma longa história de relações predominantemente amistosas entre as duas nações. As relações entre EUA e Brasil permaneceram frias até Jair Bolsonaro ser eleito, em 2018, e demonstrar sua grande afinidade por Donald Trump.
Bolsonaro confirmou seus planos de apoiar os EUA e sua pauta quanto a assuntos globais, inclusive a mudança climática, a política do Oriente Médio, a oposição à expansão chinesa na América Latina e a mudança de regime em Venezuela e Cuba. O Brasil, porém, não obteve muito de Washington em contrapartida. Sim, Bolsonaro recebe consistentemente elogios da Casa Branca, bem como promessas de maior cooperação, mas não mais do que isso. O apoio dos EUA para combater o coronavírus têm sido mínimo, foram impostas tarifas sobre exportações brasileiras cruciais, como aço e alumínio, e o déficit comercial com os EUA aumentou muito. O “mini” acordo comercial assinado pelos dois países pode ser um passo construtivo, mas nem de longe é um avanço significativo. É, em grande parte, uma promessa vaga de continuar negociando. Os EUA concederam ao Brasil o status de aliado fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e prometeram apoiar o ingresso do país na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas esses são gestos ínfimos.
Nada disso deveria ser surpresa. Apesar de anos de laços amistosos, Brasil e EUA nunca desenvolveram com êxito uma relação que pudesse contribuir, de modo contínuo, para a economia, a segurança ou o status internacional do Brasil – nem quando os interesses de ambos os países foram compatíveis. As duas nações reiteradamente declaram interesse em laços comerciais ampliados, mas não negociaram um único pacto econômico importante em três décadas, ao passo que os EUA assinaram mais de 20 acordos de livre comércio mundo afora, metade deles na América Latina. As relações econômicas entre os dois países continuam sendo importantes para ambos, mas muito mais para o Brasil, especialmente levando em conta o estado precário de sua economia. Os EUA são, hoje, o segundo maior parceiro do Brasil, o principal mercado para seus bens manufaturados e um grande investidor estrangeiro no país, mas as oportunidades para ambas as economias mal foram exploradas. O comércio dos EUA com a China e com o México, por exemplo, é 10 vezes maior do que com o Brasil. Os EUA afiançaram apenas vez por outra o apoio ao Brasil quanto a questões regionais e quase nunca a desafios mundiais.
Caso tenha a vitória confirmada oficialmente, Biden provavelmente será receoso quanto a qualquer relação com Bolsonaro devido às posturas atuais do brasileiro. Os democratas no Congresso já expressaram críticas acentuadas a Bolsonaro em várias questões, inclusive citando seu apoio a Trump e endosso à reeleição deste. Biden e seus assessores quase certamente se juntarão ao coro de queixas internacionais quanto ao Brasil não ter impedido a destruição da Amazônia. Ao contrário de Trump, um eventual governo Biden não ignorará as violações constantes por Bolsonaro da dignidade de afro-brasileiros, indígenas, mulheres e LGBTs. Novos acordos comerciais com o Brasil provavelmente não estejam na lista de prioridades de Biden, mas pode-se esperar que quaisquer laços econômicos ou comerciais buscados por ele exigirão uma atenção séria a proteções ambientais e a direitos trabalhistas. Biden também pode encorajar instituições multilaterais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI) a insistir em padrões ambientais e trabalhistas mais severos para o Brasil.
Minha expectativa é de que, se vencer, Biden mantenha a relação fria e remota com Bolsonaro, reconhecendo sua condição de pária.
Outras duas questões que podem ter efeito considerável nos laços entre Brasília e Washington com vitória democrata são a influência crescente da China na América Latina e a política dos EUA em relação à Venezuela. Espera-se que Biden abrande as tensões atuais nas relações dos EUA com a China e flexibilize pressões para países latino-americanos imporem limites ao comércio com a China. Porém, essa é uma questão difícil de se prever, especialmente quanto à alta tecnologia e seu uso. A questão Venezuela é igualmente difícil de se antever, mas Biden quase certamente desejará adotar uma política multilateral. A remoção de Nicolás Maduro pode ser menos prioritária do que a tragédia humanitária dos venezuelanos.
Minha expectativa é de que, se vencer, Biden mantenha a relação fria e remota com Bolsonaro, reconhecendo sua condição de pária. É pouco provável que Biden faça grandes esforços para pressionar o Brasil a mudar de rumo, pois não há muito o que os EUA possam fazer e o Brasil não é um parceiro crucial ou um adversário perigoso. Com sua atenção, Trump fez com que Bolsonaro se sentisse mais estimado pelos EUA, mas isso não significou muito para a prosperidade do Brasil ou o bem-estar de seus cidadãos. Uma relação efetiva e construtiva entre os EUA e o Brasil terá de aguardar outro governo brasileiro.
Tradução: Vicente Nogueira