Se você, assim como eu, está de calculadora na mão e olho no mapa eleitoral americano desde terça-feira, já deve ter se perguntado quando, afinal, os Estados Unidos, que se orgulham tanto de sua democracia, irão mudar o sistema eleitoral.
Falo desse processo de voto indireto, que dá aos Estados um determinado número de delegados no colégio eleitoral. Cada unidade da federação define as regras do jogo como quer, sem uniformidade nacional ou a institucionalização de uma autoridade nacional, uma espécie de TSE (Tribunal Superior Eleitoral) americano.
Cubro eleições americanas desde 2000 - presencialmente, nos Estados Unidos, fui enviado especial do Grupo RBS em 2008, 2012 e 2016. A cada disputa, quando a situação complica, os votos atrasam e os perdedores esperneiam, reivindicações sobre mudanças no processo aparecem. Passada a posse, nada muda.
Por quê?
Nada muda porque o sistema eleitoral americano, criticado por grupos quando não lhes convêm, favorece, ganhe quem ganhar a eleição de 2020, os dois partidos que detêm a hegemonia política americana: republicanos e democratas.
O sistema inviabiliza o crescimento de outras legendas.
Um exemplo: em 2000, naquela conturbada eleição que deu vitória, no tapetão, a George W. Bush, o candidato do Partido Verde, Ralph Nader, obteve 2,74% dos votos nacionais, sendo que 1,6% desses foram recebidos na Flórida. A reação dos democratas: "Nader 'roubou' a eleição de Al Gore e entregou a Bush".
Em sua visão, os eleitores que votaram em Nader tenderiam a escolher o democrata, o que faria diferença naquela disputa, pois 537 votos seriam suficientes para virar a partida na Flórida e dar a Gore a Casa Branca.
O colégio eleitoral perpetua o bipartidarismo nos EUA.
Há quem diga, em defesa do sistema tal qual o conhecemos, que ele favorece o federalismo, dando aos Estados autonomia para decidir suas próprias leis eleitorais, etc. Mas a verdade é que ele não representa os Estados Unidos da América do século 21. Quando foi escolhido, durante a redação da Constituição, em 1787, era impossível a realização de uma votação popular nacional devido ao tamanho continental da nação e às dificuldades de comunicação.
Os "pais fundadores" inventaram o colégio eleitoral, com cada Estado escolhendo delegados para integrá-lo. Fazia sentido: Estados menores ganhavam voz mais forte na escolha do presidente. Nos Estados escravocratas do Sul, mesmo que escravos não votassem, faziam peso demográfico ao serem contados no censo (incrivelmente, eram considerados três quintos de uma pessoa). Como o número de delegados no Colégio Eleitoral era determinado pelo tamanho da população do Estado, quem tinha mais gente teria mais influência na hora de escolher o presidente.
Hoje, o número de delegados não corresponde à população, e sim ao número de parlamentares no Congresso. A cada Estado é garantido dois senadores e pelo menos um deputado, o que corresponde ao mínimo de três delegados.
Outro argumento para a criação do colégio eleitoral é que havia o entendimento que o cidadão comum não teria conhecimento suficiente para escolher o presidente. Essa escolha deveria ser feita por pessoas mais educadas do que o cidadão mediano. Essa tese é igualmente arcaica hoje.
O sistema conhecido como "the winner takes all" (o vencedor leva todos) — que faz com que um candidato que ganhe na Flórida, como Donald Trump na atual eleição, leve todos os 29 delegados para o colégio eleitoral — reduz a disputa a algumas poucas regiões. Ou seja, não se trata de uma eleição nacional. Os dois candidatos, sabedores de que já têm garantidos os votos dos Estados vermelhos ou azuis, focam suas campanhas nos "battlegrounds", os campos de batalha. Não é exagero dizer que nem Trump nem Joe Biden gastaram muito dinheiro para aparecer em eventos em Montana (onde os republicanos dominam) ou em Illinois (feudo democrata).
A essa altura do campeonato, com o mundo de olho em Nevada, no Arizona, Geórgia, Carolina do Norte e Pensilvânia, pode-se imaginar que, graças ao processo eleitoral do século 18, o voto do eleitor desses Estados vale mais do que o dos outros 45.