"Parem a contagem", dizia uma postagem do presidente Donald Trump na quinta-feira, no Twitter, quando sua vantagem sobre o rival, Joe Biden, na disputa pela Casa Branca, se liquefazia nos Estados da Pensilvânia e da Geórgia. Quase ao mesmo tempo, no perfil do democrata, lia-se: “Todos os votos devem ser contados”.
Lado a lado nas emissoras de TV norte-americanas, as mensagens refletiam visões e valores opostos sobre política, sociedade e democracia. Agarrado à cadeira do Salão Oval, Trump prometia levar seu argumento de que os votos pelo correio seriam irregulares até últimas consequências, no caso, a Suprema Corte. Biden, favorecido exatamente por esse eleitor mobilizado em exercer seu direito de forma antecipada, pedia paciência aos seguidores.
Nas ruas, manifestantes democratas se reuniam em Mineápolis, Seattle, Filadélfia, Nova York e Portland. Na porta de escritórios de apuração, os votos eram contabilizados. Em Phoenix e Detroit, apoiadores de Trump pressionavam. Um exército de advogados contestava até as canetas usadas por eleitores que votaram pelo correio em Nevada e a distância mínima que um fiscal do partido deveria se posicionar de quem estava fazendo a contagem.
Com a indefinição se arrastando, a maior potência econômica do planeta mergulhava na incerteza, com risco de confrontos entre eleitores. A própria contagem de votos nos EUA foi antecedida por episódios de tensão. A venda de armas aumentou nos meses que antecederam a eleição e episódios de radicalização e intolerância no fim de semana anterior à votação fizeram com que governadores escalassem a Guarda Nacional para ficar de sobreaviso.
No dia 30, uma caravana de apoiadores de Trump cercou um ônibus da campanha de Biden no Texas, levando ao cancelamento de dois eventos. Dois dias depois, na Virgínia, eleitores republicanos discutiram com democratas perto da estátua do general confederado Robert Lee, em Richmond. A polícia foi acionada após relatos de tiros. Na Geórgia, um comício democrata foi cancelado porque organizadores alegaram preocupação com a presença de “um grande grupo de milícia” em um evento próximo, de simpatizantes de Trump.
O clima ficou tão pesado que organizações especializadas em medir riscos de ataques terroristas, como o International Crisis Group (ICG), que atua na prevenção de conflitos armados, chegou a afirmar que a eleição apresentava perigos nunca vistos na história recente. Em relatório, seus analistas citaram quatro fatores para a tensão: cenário político polarizado, principalmente em questões relativas a raça e identidade; grupos armados com agendas políticas; chances mais altas do que de costume de o resultado ser contestado; e a posição de Trump, que possui, segundo a organização, “retórica tóxica”.
Nos mais de 230 anos desde a redação de sua Constituição, os EUA já enfrentaram processos eleitorais marcados por guerras, assassinatos de presidentes e ameaças. Também já foram palco de pleitos acirrados. Em 2000, na era pré-redes sociais e pré-11 de Setembro, George W. Bush foi eleito presidente após uma batalha jurídica que levou mais de 30 dias. Ao final, a diferença de apenas 537 votos deu ao republicano a decisiva vitória na Flórida sobre o democrata Al Gore. O fantasma da falta de legitimidade acompanhou Bush no primeiro mandato. Mas, mesmo naquele momento analistas afirmam que o clima de polarização era inferior ao de hoje.
A eleição de 2016, em que Hillary Clinton venceu Trump no voto popular, mas perdeu no colégio eleitoral, foi menos judicializada do que a atual. Em alguns Estados, como Michigan, a vantagem do republicano foi de apenas 10 mil votos (0,3%). Os democratas reconheceram a derrota sem pedir revisão. Em 2020, Trump quer a recontagem em Wisconsin porque perdeu por 20 mil votos.
Por trás da falta de fair play está a ideia de que o outro é um inimigo disposto a trapacear. Historicamente, o reconhecimento da derrota se dá por meio de um telefonema ao adversário ainda na madrugada da eleição. O que não aconteceu neste ano – nem parece que irá acontecer. A fratura política e social norte-americana está exposta na disputa nos Estados, com sucessivos pedidos de recontagem e a promessa de levar o caso para Suprema Corte.
Feridas longe da cicatrização
A pandemia exacerbou essas divisões. Thomas Friedman, um dos mais experientes jornalistas do país, escreveu no The New York Times que os EUA não conseguem sequer ter um discurso único sobre o uso da máscara de proteção – algo que, aliás, se repete no Brasil. “O presidente Trump não passou um único dia de seu mandato tentando ser presidente de todos os americanos”. E vaticina: “Hoje não podemos mais fazer nada ambicioso – como colocar o homem na Lua – porque esse tipo de coisa precisa ser feita com união”.
A crise sanitária contribuiu para o aumento do desemprego. A população vive o drama na saúde e na economia no dia a dia, enquanto Trump culpa o inimigo externo, “o vírus chinês”. A tensão social se elevou com episódios de brutalidade policial, que levaram milhares às ruas contra o racismo. O segregacionismo era reacendido, enquanto Trump chamava manifestantes do Black Lives Matter de “baderneiros”, reafirmando a posição de presidente da “lei e da ordem”.
No auge dos protestos, uma imagem se tornou símbolo da cisão social: um casal de St. Louis apontando armas para manifestantes antirracismo. Mark McCloskey, 63 anos, e a esposa, Patricia McCloskey, disseram temer por suas vidas e afirmaram que os manifestantes danificaram um portão de ferro. O casal que responde judicialmente pelo ato porque a lei estadual proíbe o uso de armas letais para ameaças ou ofensas a outras pessoas foi, posteriormente, convidado de honra da convenção republicana que ungiu Trump candidato à reeleição.
Dias antes, o presidente retuitou a gravação de um homem que exclamava “white power” (“poder branco”). A filmagem foi feita em The Villages, região da Flórida que concentra moradores aposentados: “Obrigado ao bom povo de The Villages. A esquerda radical não faz nada. Os democratas cairão no outono. O corrupto Joe (em referência a Biden) está baleado”, escreveu Trump. A publicação foi posteriormente apagada.
A dificuldade do presidente em condenar grupos racistas e de extrema-direita ficou explícita no primeiro debate presidencial, quando, incitado a censurar os Proud Boys (“rapazes orgulhosos”), classificada como uma organização extremista pelo FBI, a polícia federal do país, o presidente afirmou:
– Recuem e aguardem.
Membros do grupo comemoraram e responderam:
– Estamos a postos.
O Armed Conflict Location and Event Data Project (Projeto de Localização de Conflitos Armados), uma organização não governamental especializada em reunir e mapear dados de violência política, monitora, além dos Proud Boys, milícias que se alinham a forças de segurança, como Oath Keepers e Three Percenters, e grupos com histórico de conflitos e céticos em relação ao poder do Estado, como os Boogaloo Boys.
Analistas lembram que presidentes dos anos 1960 e 70, como Lyndon Johnson, também viveram períodos políticos e sociais conturbados em meio à Guerra do Vietnã, mas talvez nenhum outro tenha tentado tanto enfraquecer a democracia em atos sistemáticos. Uma das manobras foi a indicação por Trump da juíza Amy Coney Barret para a vaga de Ruth Bader Ginsburg na Suprema Corte a menos de um mês da eleição com o declarado objetivo de cristalizar a maioria conservadora do tribunal para julgar eventuais questionamentos sobre o pleito.
Divididos, os americanos veem o tecido social ser esgaçado, enquanto Trump submete as instituições a um nível de estresse poucas vezes visto. Na quinta-feira (5), após postar várias mensagens em letra maiúscula para que a apuração fosse interrompida, afirmou que, se a apuração considerasse “apenas os votos legais”, ele seria o vencedor da eleição. Não apresentou provas de qualquer ilegalidade.
Esse comportamento tem recebido críticas por minar a confiança nas instituições e questionar a integridade do processo democrático com alegações sempre desprovidas de fundamento. Ainda na quinta, 19 ex-procuradores dos EUA – todos que serviram sob presidentes republicanos – divulgaram um comunicado chamando as ameaças de Trump e alegações de fraude de “prematuras, sem fundamento e imprudentes”. “Pedimos ao presidente que respeitosamente permita que o processo legal de contagem de votos continue, de acordo com as leis, e evite comentários adicionais ou outras ações que podem servir apenas para minar nossa democracia”, escreveram.
O posicionamento de Trump de projetar um falso dilema entre a ordem e anarquia energiza seus apoiadores – e lhe deu votos. Na Flórida, onde ele ganhou a eleição, a estratégia de tensionar com Cuba e Venezuela surtiu efeito entre os eleitores hispânicos. Trump teve, por exemplo, o melhor desempenho de um candidato republicano à presidência na grande Miami desde George W. Bush, em 2004.
Ao mesmo tempo, o fenômeno revelou que os latinos não podem ser entendidos como um bloco monolítico. Esse contingente teve comportamentos opostos na Flórida (apoiando Trump) e no Arizona e no Texas (votando em massa em Biden). As mesmas diferenças apareceram entre eleitores afro-americanos. Na Flórida, o voto negro pendeu para o Trump.
Os resultados da apuração para o Congresso confirmam que o parlamento é um microcosmo da divisão da sociedade. Os democratas devem manter a maioria entre os Deputados, enquanto os republicanos dominarão o Senado. Diante disso, o presidente que tomará posse em janeiro terá dificuldades para levar adiante seus projetos, que serão travados pela oposição, mais interessada em minar a governabilidade, perpetuando divisões, do que em solucionar crises e cicatrizar feridas abertas pela maior disputa eleitoral das últimas décadas.