Fissuras de uma sociedade não são curadas apenas com eleição. A polarização política escancarada na disputa de 2016 e aprofundada nos últimos quatro anos vai continuar acompanhando os americanos, independentemente de quem estiver morando na Casa Branca.
Também os problemas centrais dos Estados Unidos não irão sumir da noite para o dia. A nação lidera o macabro ranking da covid-19 no mundo e estancar essa sangria será o desafio número 1 do vencedor do 3 de Novembro. A economia dá sinais de recuperação, mas o país carregará por meses ou anos as marcas da recessão provocada pela pandemia.
Do ponto de vista geopolítico, a maior potência militar do planeta se vê ameaçada em sua hegemonia pós-Guerra Fria diante da ascensão chinesa. Nessa briga de gigantes, a América de Donald Trump preferiu, nos últimos quatro anos, pressionar aliados e dinamitar pontes na Europa e no Oriente Médio.
Intramuros, o governo federal e os Estados precisam enfrentar o racismo, chaga aberta nas entranhas do país. Há algo de muito errado em uma sociedade quando um negro é asfixiado até a morte pelo joelho de um policial branco, onde manifestantes são chamados de "baderneiros" pelo presidente ou onde milícias armadas prometem "fiscalizar" o voto do eleitor. Mais ainda quando uma nação precisa prender a respiração até ter certeza de que um candidato à presidência irá reconhecer a derrota diante do oponente, colocando em dúvida as instituições democráticas. Suspeitas de fraude levantadas pelo próprio comandante-em-chefe da nação seriam esperadas em processos eleitorais capengas de antigas republiquetas latino-americanas ou dos grotões da África pós-colonial. Não nos Estados Unidos da América, que sempre se orgulharam da solidez de suas instituições e exportaram seu modelo de liberdade ao mundo.
Outro assunto que deverá ser tratado com urgência pelo próximo inquilino da Casa Branca é a questão ambiental. Os EUA são o segundo maior emissor de CO2 no mundo, e cientistas alertam para o perigo da situação. Desde que foi eleito, Trump reverteu regras ambientais, afrouxou regulamentos sobre poluição de ar e água e retirou o país do Acordo de Paris.
O enfrentamento político é reflexo de uma tensão social que ora explode em confrontos nas ruas, em divergências sobre aborto, no porte de armas e na questão ambiental. O novo presidente enfrentará uma parte da população indignada com o nível de desigualdade social _ sim, ela existe mesmo nos EUA e retroalimenta as divisões.
Reconquistar a confiança do cidadão na política tradicional, como se viu nas duas últimas eleições, é desafio dos partidos. Republicanos e democratas do processo eleitoral emergem com lições e temas de casa a cumprir. O trumpismo veio para ficar, como importante ala da legenda que forjou outrora líderes como Abraham Lincoln, Theodore Roosevelt e Dwight Eisenhower. Os jovens batem à porta nas fileiras democratas, que já deram à História presidentes como Woodrow Wilson, Franklin Delano Roosevelt e Barack Obama.
Diante da maior pandemia em um século, de uma crise econômica que irmana a maioria das nações na esteira do coronavírus, da ameaça da segunda onda e com o segregacionismo sempre presente, os últimos seis meses de campanha expuseram as fragilidades da América. Reconhecê-las é o primeiro passo para curar as feridas da mais aguerrida disputa presidencial em décadas.