Nos Estados Unidos, já houve eleições presidenciais marcadas por divisões políticas, assassinatos, renúncias e guerras. Então, por que, a disputa entre Donald Trump e Joe Biden, nesta terça-feira (3), é tão especial? O que a diferencia das demais?
Eleições se tornam históricas quando o destino de uma nação ou a capacidade de alterar os rumos de uma era estão em jogo. Se fosse apenas por esses quesitos, o pleito a que chegamos já teria a capacidade por si só de exigir presença nos livros de História. Mas há mais elementos decisivos: ocorre em meio a uma pandemia e opõe visões completamente divergentes sobre como os Estados Unidos deverão ser daqui para frente.
A coluna separou esses e outros temas que tornam a batalha pelo voto desta eleição um capítulo especial do século 21 no nível doméstico e com capacidade de influenciar o tabuleiro mundial por anos.
China
Apesar das diferentes abordagens, tanto republicanos quanto democratas concordam que esse é o tema mais importante em termos de geopolítica. Por trás da guerra comercial entre Washington e Pequim está o risco de perda da hegemonia global pelos Estados Unidos diante da ascensão chinesa. Nos últimos 30 anos, desde o colapso soviético, os americanos são a única superpotência global e ajudaram a erigir o sistema internacional após a Segunda Guerra Mundial. Alguns analistas, entretanto, afirmam que o mundo hoje dá sinais de ser mais "chinocêntrico" - ou seja, pautado pelas decisões econômicas e pela projeção de influência do dragão do Oriente sobre outros continentes, ocupando espaço que outrora era dominado pelos EUA. Tanto Trump quanto Biden entendem a China como o adversário estratégico - é uma política de Estado americana -, a diferença é que, no caso de reeleição, as divergências devem se aprofundar. Biden propõe saídas pelo diálogo.
Coronavírus
A eleição ocorre em meio à maior pandemia em um século, e os EUA são o país com maior número de mortos e infectados pela covid-19. Por si só, isso já torna o pleito um daqueles momentos de inflexão histórica. Em 1918, quando o mundo viveu a gripe espanhola, Woodrow Wilson (democrata) era o presidente em segundo mandato de um país que emergia da Primeira Guerra.
Polarização
A divisão política que já se via em 2016 foi aprofundada em 2020. A polarização é alimentada pelo próprio presidente Trump, como estratégia política para manter sua base eleitoral energizada. Talvez nem a eleição seja suficiente para restaurar as fissuras da sociedade americana.
Racismo
O problema é histórico e estrutural nos EUA. Mas durante o governo Trump se aprofundou em razão de episódios envolvendo violência policial - a morte do negro George Floyd, asfixiado por um agente branco, e Jacob Blake, alvejado pelas costas durante uma abordagem, reacenderam a tensão. A reação de Trump, que se posiciona como um presidente da "lei e da ordem", chamando manifestantes de baderneiros e apoiando a polícia, gerou mais revolta.
Crise econômica
Maior potência econômica e militar do planeta, os EUA pautam a agenda global. A economia americana vinha crescendo e apresentava, até dezembro, indicadores históricos de baixos desemprego e inflação. A pandemia mudou o cenário, jogando 22 milhões de pessoas nas filas de desocupados. A economia cresceu a um ritmo recorde no terceiro trimestre depois que o governo injetou mais de US$ 3 trilhões em medidas de alívio, que alimentaram os gastos dos consumidores. Mas as cicatrizes da recessão provocada pela covid-19 devem demorar um ano ou mais para sumir.
Excepcionalidade americana
A eleição - e o risco de Trump não aceitar o resultado da votação - testa os limites da democracia americana. Os EUA foram erigidos a partir da lógica da excepcionalidade - uma nação diferente das demais, a partir do mito dos pais fundadores, com uma missão de expandir a democracia para o mundo. No entanto, Trump questiona a lisura de instituições de Estado, como o próprio processo eleitoral. O temor de o atual presidente não aceitar o resultado da eleição ou de violência nas ruas não condiziam, até agora, com a solidez da democracia americana.
Populismo
A eleição marcará a continuidade ou não de uma maré populista e nacionalista. Desde a vitória de Trump, em 2016, vários movimentos políticos inspirados na alt-right (direita alternativa) americana se espalharam por vários continentes, inspirando políticos, como o presidente Jair Bolsonaro, no Brasil, e o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orban.
Brasil
Poucas vezes, um governo brasileiro teve uma relação tão próxima com o chefe da Casa Branca. A união entre Jair Bolsonaro e Trump lembra o período histórico em que Brasil e EUA estavam alinhados automaticamente, no início do regime militar brasileiro. Uma mudança no Salão Oval pode exigir uma guinada na política externa brasileira, que se adaptará ou não à de Biden - o Brasil não será prioridade, uma vez que o democrata estará mais preocupado em reconstruir pontes com aliados na Europa e no Oriente Médio, além de colocar em outro nível as relações com a China. Mas pode haver pressões no campo ambiental. Por outro lado, a reeleição de Trump pode significar o aprofundamento dos laços com o Brasil - e obrigar o país a tomar posição mais agressiva em relação à China, principal parceiro econômico brasileiro.
Partidos políticos
Tanto Trump quanto Biden modificaram seus partidos. O atual presidente, que se apresentou como um outsider, que despertou uma base eleitoral que não se sentia representada pelos partidos tradicionais. Trump foi eleito pelo votante trabalhador, homem, heterossexual e que se sentia afastado das elites. Mesmo que republicano perca a eleição, o trumpismo, para muitos uma força política própria, deve persistir. Biden tem se colocado como um eventual presidente de transição devido a sua idade avançada (77 anos). Uma vez eleito, ele pretende abrir portas para a nova geração do partido, tendo sua vice, Kamala Harris, à frente.