Esta reportagem está dividida em três partes. Leia as outras duas aqui e aqui.
*Para proteger as identidades dos personagens desta reportagem, os nomes dos citados foram alterados e os locais em que eles trabalham não estão especificados.
A cena chama a atenção de quem passa por uma avenida da zona leste de Porto Alegre. Sob uma sinaleira, uma mulher magra e com roupas velhas é acompanhada por duas crianças, que carregam pacotes de balas de goma mantidos entre os pequenos dedos. São Ângela*, 32 anos, Cibele*, nove, e Augusto*, seis.
Mãe solteira de sete filhos, Ângela está desempregada, e a única renda mensal garantida é a do Bolsa Família – no mês passado, um total de R$ 372. A quantia, no entanto, não paga nem a comida. Só com a 6ª série completa, costumava trabalhar como diarista, mas seus clientes minguaram na pandemia. O auxílio emergencial a segurou um tempo com os filhos em casa, porém, após a redução dos valores do programa, não encontrou saída: para fugir da fome, o jeito foi ir para as esquinas vender doce.
– Não passo fome porque conseguimos doações. Nas sinaleiras, muitas vezes as pessoas nos dão rancho, leite, fralda, lenço umedecido, enlatados. Mas não é sempre. Tem dias em que se ganha, que vendemos bem. Outros dias, nada – conta.
A mãe confessa que não era essa a infância que planejou para os filhos, mas frente às circunstâncias entende que é o melhor que pode fazer. Além das duas crianças que estavam com ela na sinaleira, os outros cinco ficaram em casa. Quem assume o papel de cuidar deles é a mais velha, de 16 anos.
Para evitar riscos maiores, ela só deixa os pequenos se aproximarem de motoristas no sinal fechado entre a faixa da direita e a calçada. Eles são proibidos de passar no meio dos carros pelo risco de serem atingidos por motos. A mãe diz que o dinheiro que os filhos arrecadam fica para eles:
– Tinha parado de trazer as crianças, mas não tem o que fazer com eles em casa. Eles gostaram, também. Quem não gosta de chegar no final do dia e ter um dinheirinho para comprar uma besteira, um cachorro-quente?
Enquanto estão nas ruas, os pequenos estão longe da escola. Em 2021, Cibele não fez nenhuma atividade escolar. Vestida com uma camiseta roxa com um unicórnio e calça combinando na mesma cor, além de uma máscara com joaninhas, a garota tímida conta estar feliz acompanhando a mãe na sinaleira, numa jornada de trabalho infantil que começa antes das 10h e vai até escurecer. Perguntada sobre o futuro, responde rapidamente:
– Meu sonho é ser modelo.
Diferentemente da irmã tímida, Augusto já fala e caminha com mais desenvoltura. No dia em que conversou com a reportagem, o garoto de seis anos tinha ganhado R$ 20 de um motorista, dinheiro que foi suficiente para garantir o alimento da família com quentinhas no almoço. Nunca pisou em uma escola, apesar de estar matriculado desde o ano passado. Reclama da educação de alguns motoristas que nem o olham, mas demonstra contentamento pelo dinheiro que recebe.
– É bom, porque a gente ganha R$ 50 por dia. Quando não é bom, “nós ganha” R$ 10, R$ 20, R$ 30. Se eu tivesse em casa, iria para a rua brincar – afirma.
Ele diz já ter pensado sobre o que quer no futuro.
– Meu sonho é ser ou policial ou ladrão – projeta, brincando, antes da intervenção da irmã, que pede para que ele seja policial.
O quarteirão onde Ângela e os filhos estavam é movimentado. Eles se encontravam no sentido centro-bairro, enquanto na sinaleira do sentido contrário quem trabalhava eram os sobrinhos dela, primos de Cibele e Augusto: um adolescente de 15 anos e duas crianças, de seis e quatro anos. Eles ainda têm outros três irmãos, que estavam em casa. O mais novo, de quatro, caminhava entre os carros arrecadando dinheiro e, também, entregando balas de goma.
A cena da mãe acompanhada dos filhos se repete em outros pontos da cidade. Na Zona Sul, uma imigrante de 25 anos segurava nos braços a filha de oito meses. Pedia doação com uma placa, jornada que vai das 14h até escurecer. Outro filho dela, de seis anos, corria no mesmo canteiro em que a mãe estava, ajudando a recolher o dinheiro.
Seu plano não era esse quando emigrou. Acabou encontrando um Brasil também em crise. Primeiro morou no norte do país, mas não havia emprego, e o calor excessivo da região a desagradava. Em abril de 2021, veio para o Rio Grande do Sul, acreditando que o marido, ajudante de cozinha, teria mais oportunidades.
– Estou na rua porque ele não consegue trabalho. Preciso pagar aluguel. Ele enviou currículo, mas não está trabalhando porque não o chamam – argumentou, em português misturado com espanhol em algumas palavras.
A bebê no colo dela estava enrolada em um cobertor curto. A pequena chorava enquanto a mãe conversava. Apesar do sol, fazia frio naquele final de tarde.
O abuso e suas consequências
O raciocínio de alguns pais e mães ouvidos por GZH é o de que os seus filhos ao menos estão ocupados com alguma atividade na rua, e não ociosos em casa. Mas esse pensamento é apontado como equivocado por especialistas, que detalham os prejuízos causados pelo trabalho infantil.
Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Carmem Maria Craidy alerta que o trabalho precoce causa riscos de desenvolvimento psicológico e físico e remove o “direito de ser criança e de brincar”.
– O trabalho infantil é uma violência muito grande contra as crianças e contra a sociedade, porque prejudica o desenvolvimento dessas crianças e resulta em jovens com dificuldade por não terem tido esse período fundamental das vidas – explica.
Também há riscos para a saúde. A psiquiatra e professora de saúde coletiva da UFRGS Maria Gabriela Curubeto Godoy alerta para o perigo de desenvolvimento de transtornos psicológicos aos jovens submetidos ao trabalho infantil:
– Para a saúde mental, o trabalho precoce pode repercutir em quadros de ansiedade e depressão e também na construção de uma relação de insegurança com o mundo. Além disso, aumenta o fosso relacional entre populações marcadas pela pobreza e outras que não são marcadas por isso.
O Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI) destaca também que o trabalho infantil alimenta o ciclo de pobreza: quanto mais cedo o indivíduo começa a trabalhar, menos tempo e dedicação aos estudos consegue ter, o que causa, no futuro, um adulto ocupando cargos de menor remuneração ou sem qualificação.
Além disso, o trabalho infantil abre caminho para outras violações, como o abuso sexual. Em Canoas, em 2020, a Polícia Civil prendeu um homem suspeito de abusar de ao menos sete crianças e adolescentes entre sete e 14 anos – os investigadores acreditam que haja outras vítimas que não relataram os casos. O criminoso os abordava na sinaleira e oferecia dinheiro a elas.
– Ele tinha uma estratégia: se aproximava das crianças e dos adolescentes, ofertava dinheiro para iniciar uma relação de amizade com eles e, depois, tendo a confiança deles, oferecia valores maiores para o sexo – revela o delegado Pablo Rocha, da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
Passado quase um ano do caso, com o suspeito preso e réu na Justiça, o delegado diz que a investigação serviu como alerta:
– Esse caso ensinou para a gente que aquele menor não é só vulnerável ao reflexo do trabalho infantil. Ele é vulnerável em todas as situações das quais um criminoso pode se aproveitar. O tráfico se aproveita para entrega de drogas, para servir de olheiro, e o criminoso sexual se aproveita do corpo dele.
Para a professora Craidy, o aumento do trabalho infantil em Porto Alegre está diretamente relacionado às condições de vida da população, com menos recursos e desemprego, associado à ausência de políticas públicas efetivas.
– Quando as famílias ficam sem condições mínimas de vida, elas lançam mão de tudo, inclusive do trabalho infantil – resume.
O avanço do trabalho infantil não é visto só no Brasil, o que reforça a tese da professora de que está fundamentalmente ligado ao desenvolvimento econômico. Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) aponta que o número de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil chegou a 160 milhões em todo o mundo – um crescimento de 8,4 milhões de meninas e meninos nos últimos quatro anos, de 2016 a 2020. É o primeiro aumento em duas décadas – no ano em que o mundo sentiu as medidas restritivas necessárias para frear o vírus.
Secretária-executiva do FNPETI, Isa Oliveira entende que o fechamento das escolas e a não garantia de acesso por parte do poder público ao ensino de modo remoto, especialmente os mais pobres, gerou exclusão social, aumentando o trabalho infantil. Além disso, ela alerta para outro ponto que considera fundamental: com a evasão escolar, que pode ser definitiva, as crianças também podem entrar em situação de insegurança alimentar:
– Um número expressivo de crianças tem na merenda escolar a única refeição do dia. Então a escola tem esse papel protetor, também. Estar afastado da escola eleva o risco de diversas violências.
O Fórum também caracteriza a baixa escolaridade dos pais como fator comum entre famílias em que há casos de trabalho infantil, reforçando o ciclo vicioso de sofrimento de geração para geração. Pais com baixa escolaridade têm maior probabilidade de que seus filhos corram o risco de trabalhar para sobreviver do que pais com boa formação e melhores oportunidades de trabalho.
Leia as outras partes desta reportagem:
De volta às sinaleiras de Porto Alegre, trabalho infantil tem consequências devastadoras, mas pode ser solucionado
Prefeitura afirma ter plano para combater trabalho infantil, que cresce nas sinaleiras de Porto Alegre
Em Porto Alegre
334 foi a quantidade de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil abordadas pela primeira vez pela Fasc em Porto Alegre em 2020. Em 2019, eram 120. Ou seja, houve um aumento de 178,3%. Fonte: Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc)
No mundo
160 milhões de crianças e adolescentes estavam em situação de trabalho infantil em todo o mundo em 2020. Isso significa 8,4 milhões de crianças e adolescentes a mais, se comparado com dados de 2016. Foi a primeira vez que a Unicef identificou aumento desse número no século 21. Fonte: Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
Em áudio
Ouça um resumo dessa reportagem que foi ao ar no programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha.