*Para proteger as identidades dos personagens desta reportagem, os nomes dos citados foram alterados e os locais em que eles trabalham não estão especificados.
O sinal fica vermelho, os carros param e é a hora de Gustavo*, 15 anos, ir para a avenida. Ele repete sempre o mesmo gesto, espécie de ritual. Antes de espalhar os torrones entre os retrovisores dos carros em um ponto movimentado da zona norte de Porto Alegre, fecha os olhos e faz o sinal da cruz. O aceno é um gesto de quem depende daquela venda para conseguir o dinheiro para comer, alimentar as três irmãs menores e ajudar a mãe, desempregada, com um bebê de colo e sozinha – o pai, Gustavo nunca conheceu.
O sinal da cruz acaba comovendo quem passa:
– Toda vez que faço eu vendo um ou dois, ou alguém me dá uma gorjeta – revela, em voz estridente, o garoto magro, de olhos azuis e sardas no rosto, comuns em quem se expõe em excesso ao sol.
Ele trabalha cerca de 13 horas por dia – chega à região em que atua às 8h30min e só sai por volta das 21h. O almoço é um pedaço pequeno de frango e um pão de alho, ao preço de R$ 4. Quando ganha um dinheiro a mais, compra um pastel e um refrigerante de um dos ambulantes do terminal de ônibus próximo. Se não, a refeição seguinte é só quando volta para casa.
A rotina dura começou aos 14 anos. Era setembro de 2020 quando, pela primeira vez, ele foi trabalhar nas sinaleiras da zona leste da Capital. Sua decisão veio em meio à dificuldade da mãe para conseguir emprego.
Sem aulas presenciais por causa da suspensão causada pela pandemia, viu na rua a oportunidade de ajudar a passar o tempo livre e ganhar dinheiro para auxiliar em casa. Chegou ao 9º ano do Ensino Fundamental fazendo as atividades que a mãe buscara impressas no colégio, já que não tem celular ou computador. Não desistiu, mas reconhece que o estudo é prejudicado pelo trabalho.
– É difícil, porque saio cansado. Tem dias que saio tarde daqui e não consigo fazer as atividades, tenho que fazer no outro dia, antes de vir (para o sinal). A gente tenta encaixar tudo para poder ajudar a mãe.
Casos como o de Gustavo têm se multiplicado dia a dia. Em Porto Alegre, quem circula pela cidade percebe o aumento da quantidade de pessoas pedindo ajuda nas esquinas. Muitas são crianças e adolescentes. A observação é confirmada em números. Em 2020, levantamento da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) mostra que 334 crianças e adolescentes foram abordados pela primeira vez em situação de trabalho infantil na cidade. No ano anterior, haviam sido 120. O aumento é de 178,3%.
Os mesmos motivos também trazem de volta um problema crônico de tempos passados, como as décadas de 1990 e 2000, mas que chegou a ser considerado solucionado na cidade: os menores de idade que moram na rua. Em 2020, equipes da Fasc abordaram 111 crianças e adolescentes sem abrigo, uma elevação de 68% se comparado ao ano anterior.
O aumento do trabalho infantil e a falta da moradia de menores na rua estão ligados diretamente ao momento econômico do país, dizem especialistas. É um fenômeno causado pela miséria, que leva as famílias a abreviar a infância de seus filhos e colocar em risco o futuro deles – em troca de ter o que comer.
A reportagem de GZH percorreu as ruas da cidade para ouvir e conhecer crianças e adolescentes que passam por essa situação. Não foi difícil encontrá-los, sobretudo nas avenidas de maior movimento ou em cruzamentos próximos de hipermercados. Foram localizados menores entre quatro e 15 anos. Também foi possível perceber muitas mães com seus filhos acompanhando-as no trabalho nas sinaleiras – alguns ainda bebês, como um de oito meses que era carregado pela mãe venezuelana na Zona Sul. Elas afirmam ser essa a única saída encontrada, já que as escolas e as creches ainda estavam fechadas durante a apuração desta reportagem, entre maio e junho, e até hoje a reabertura não ocorreu de maneira integral.
Todos os personagens ouvidos compartilham do mesmo sonho: deixar as ruas e ter uma atividade que os permita retomar as mínimas condições de viver bem e planejar um futuro que não seja viver de migalhas.
Em duplas, com um patrão
Era por volta das 16h de uma segunda-feira quando GZH encontrou os primos Téo*, 14 anos, e Ivan*, 13, em uma esquina do bairro Bela Vista. Enquanto o restante das pessoas aproveitava o sol nas praças da região, os dois trabalhavam vendendo torrones. Adotaram aquele ponto específico da cidade em fevereiro de 2021, quando o dinheiro em casa apertou.
Moradores de um bairro da Zona Leste, ambos têm a mesma resposta sobre o motivo de estarem ali: ajudar as mães, que estão desempregadas. Ivan tem cinco irmãos e pouco conviveu com o pai, que morreu quando ele era mais novo. Téo tem quatro irmãos. Nunca teve notícia do pai.
A dupla trabalha oito horas por dia, entre 8h e 16h. Ivan não tem celular e contou não fazer atividades da escola desde março de 2020, ainda que tenha passado de ano. Téo faz as atividades no único dispositivo da casa que consegue acessar a internet, o celular da mãe – quando ela não o está usando.
Antes de migrar para a venda de torrone, os primos tentaram comercializar balas de goma, mas obtiveram menos ganhos com esse produto. Depois, elaboraram placas contando o sonho de Ivan de comprar uma bicicleta e pedindo doação, o que também rendia pouco – até hoje ele tenta juntar o dinheiro com esse objetivo.
Perguntados sobre o que torna o dia deles ruim, respondem que é quando não conseguem levar dinheiro para casa. Ao encontrar a reportagem, eles já estavam encerrando o turno e voltavam com R$ 20, sendo que precisavam ainda pagar a passagem de ônibus com esse montante.
– Às vezes, não tenho dinheiro. Pergunto: “Mãe, dá para comprar uma bolacha?”. Mas aí tem que comprar um leite, ou meu irmão não tem fralda. É quando fico chateado – diz Ivan.
Magros e com chinelos e roupas surradas, os primos dizem que a diversão se dá sempre depois do trabalho. É quando chegam no campo de futebol do bairro em que moram e, ali, podem sonhar um pouco como os outros garotos das suas idades. Atacantes, imaginam ser jogadores do Grêmio ou Inter, mas nunca tiveram coragem de tentar um teste na escolinha dos dois clubes. Enquanto isso, carregam uma das poucas convicções mútuas sobre o trabalho na rua e a parceria no jogo:
– Jogamos melhor juntos.
Também em dupla trabalham Gustavo, o primeiro personagem citado nesta reportagem, e seu amigo, Tomás*, 16. Eles compartilham a mesma sinaleira da Zona Norte. O acordo que fizeram é de um sinal vermelho para cada um vender os doces – é necessário ser rápido, já que cada segundo desperdiçado é uma chance de o carro arrancar com o torrone e o prejuízo pesar no bolso.
Gustavo já levou tapa na mão de um motorista, ouviu ofensas, mas aprendeu a malandragem que o ajuda a sobreviver. Tomás também. Ele começa às 6h na sinaleira e ali fica até o final da tarde. A vantagem é que mora no mesmo bairro em que trabalha, o que o permite almoçar na casa em que mora com a mãe. Está no 9º ano do Ensino Fundamental e usa um celular “todo quebrado” que comprou com dinheiro que conseguiu na rua para estudar.
Gustavo e Tomás se conheceram porque têm o mesmo “patrão”, um homem que não dizem o nome e que é responsável por vender a eles por R$ 20 cada caixa com 50 doces. Ao final do dia, ainda precisam entregar R$ 30 de comissão. Os torrones são acompanhados de um bilhete que afirma que eles estão nas ruas porque precisam comprar uma casa, junto a um pedido de doação. Os dados bancários e o CPF não são dos dois, e sim do chefe. As camisetas brancas que usam contêm as mesmas informações do bilhete.
Os adolescentes garantem que o homem já repassou a eles quantias recebidas via banco, mas preferem não entrar muito no assunto. Na sinaleira seguinte, há outros menores com camisetas iguais pedindo doação para os mesmos dados bancários.
O desejo de ambos é trabalhar em algum supermercado, para poder dar prioridade ao estudo. Lamentam não ter tido a oportunidade ainda. Gustavo chegou a começar um curso de computação, mas faltou dinheiro para pagar a mensalidade. A rua foi sua última opção. Ao menos, dizem, não passam fome e têm um teto para morar.
– Passar fome eu não digo. Mas tem dias em que só tem o arroz e o feijão e tem outros em que há fartura. Depende. Quando tem fartura, tem alguma carne, uma salada, arroz e feijão reforçado com mais grãos – descreve Tomás.
Leia as outras partes desta reportagem:
Sozinhos ou com a família inteira: GZH conta as histórias de crianças e adolescentes que trabalham nas sinaleiras de Porto Alegre
Prefeitura afirma ter plano para combater trabalho infantil, que cresce nas sinaleiras de Porto Alegre
Em Porto Alegre
334 foi a quantidade de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil abordadas pela primeira vez pela Fasc em Porto Alegre em 2020. Em 2019, eram 120. Ou seja, houve um aumento de 178,3%. Fonte: Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc)
No mundo
160 milhões de crianças e adolescentes estavam em situação de trabalho infantil em todo o mundo em 2020. Isso significa 8,4 milhões de crianças e adolescentes a mais, se comparado com dados de 2016. Foi a primeira vez que a Unicef identificou aumento desse número no século 21. Fonte: Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
Em áudio
Ouça um resumo dessa reportagem que foi ao ar no programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha.