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*Para proteger as identidades dos personagens desta reportagem, os nomes dos citados foram alterados e os locais em que eles trabalham não estão especificados.
Em crescimento em Porto Alegre, conforme constatado pela reportagem de GZH e admitido pelas autoridades do município, o trabalho infantil é um problema grave e que se desdobra em vários - está relacionado com a evasão escolar, com a insegurança alimentar e com a pobreza de uma forma geral.
Nem todo o contexto de trabalho infantil é igual. De acordo com a Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), há configurações diferentes da situação de abandono de menores em cada região de Porto Alegre.
– A realidade do trabalho infantil nas Ilhas é diferente da Restinga, por exemplo. Nas Ilhas, a gente tem a realidade de catação e muitos espaços de reciclagem, enquanto na Restinga temos trabalho rural, além dos que mais aparecem e que têm crescido na cidade como um todo: a mendicância e o comércio informal – detalha Helena de la Rosa, coordenadora da Proteção Social Especial da Fasc.
Não há dados recentes em nível estadual sobre trabalho infantil – os números da Capital são calculados a partir de abordagens feitas pela Fasc, ou seja, crianças que foram identificadas e em algum momento passaram a ser acompanhadas pelas equipes (veja no final deste texto). Os números nacionais são desencontrados, e a indefinição sobre o novo Censo demográfico, que teve corte de verbas anunciado pelo governo, pode deixar o assunto por mais tempo à sombra.
De todo modo, é consenso entre os especialistas que o fenômeno aumentou e precisa ser enfrentado. E é diferente do que fora verificado pela Fasc há 15 anos, quando a capital gaúcha começava a atacar outro problema envolvendo crianças e adolescentes: a moradia na rua. O entendimento é de que a experiência adquirida naquela época pode ser usada agora.
Era novembro de 2006, no governo José Fogaça, quando a prefeitura apresentava o projeto Ação Rua, que tinha como objetivo central devolver as crianças e adolescentes ao espaço de convívio seguro por meio de abordagens nas vias, acompanhamento contínuo de equipes da Fasc e a inclusão em programas sociais. Foi formado um grupo com 12 equipes descentralizadas, agindo por região.
Na data de apresentação da iniciativa, a Fasc detalhou uma pesquisa realizada em 2004 que registrava 55 crianças sem-teto na cidade. Outras 444 trabalhavam nas ruas. Já no final de 2016, os números eram considerados animadores. O estudo revelava que as crianças em situação de rua haviam caído 93%. O problema era considerado praticamente resolvido. Mas a nova crise, na pandemia, o trouxe de volta.
Um dos idealizadores do Ação Rua, o sociólogo Leo Voigt é hoje o secretário municipal de Desenvolvimento Social de Porto Alegre. Ele promete que o governo Sebastião Melo investirá pesado na área:
– Estamos fortalecendo a rede municipal de assistência. Ela é que nem a do Sistema Único de Saúde (SUS): presta serviço todos os dias para todo mundo, principalmente para os mais necessitados.
De acordo com o secretário, estão sendo ampliadas as equipes de atendimento à população de rua. A pasta também quer aumentar a oferta do auxílio moradia, uma ajuda financeira para garantir um teto a pessoas em situação de rua e imigrantes, além de hospedagem social, com mais abrigos. Voigt entende que a atenção aos adultos se reflete nos menores.
Ele ainda projeta reorganizar as abordagens na rua – atualmente a cidade possui as mesmas 12 equipes de abordagem do que à época do lançamento do projeto. A prefeitura pretende lançar, em breve, um Plano Municipal de Enfrentamento a Situação de Rua, para crianças e adultos, em uma ação integrada com as secretarias da Saúde e do Desenvolvimento Social.
– A sensação que eu tenho hoje, comparando com o que vimos lá atrás, é de um número menor, mas situações mais complexas, cronificadas, ou seja, que se perpetuam. É um grande desafio – avalia o secretário. – Mas temos uma vantagem. Nesses anos, o sistema das secretarias desenvolveu métodos, processos, conhecimento, inteligência e dados. Estamos todos, a cidade, as ONGS, toda a rede de assistência que atende a criança, muito mais amadurecidos.
As equipes de assistência costumam trabalhar com acompanhamento contínuo das crianças e suas famílias. Helena de la Rosa, da Fasc, explica que primeiro é necessário ganhar a confiança dos menores para depois aprofundar-se no contexto em que estão inseridas:
– Trabalha-se primeiro numa perspectiva de aproximação, criação de vínculo, para entender o contexto que levou à violação de direitos. Depois, vemos quais serviços de assistência estão disponíveis para aquela realidade.
Para Helena, a política de assistência social “é de travessia”, ou seja, “construção de um processo para deixar a situação de violação de direitos para a criança e a família”.
As estratégias de enfrentamento
Especialistas e autoridades ouvidas por GZH são uníssonos em afirmar que a redução dos número de crianças em situação de trabalho infantil nas ruas da cidade só ocorrerá com o aumento das vagas de emprego formais e informais para adultos, o que possibilita haver famílias com melhor estrutura financeira e que não dependam dos menores para sobreviver. Enquanto não há perspectiva breve para que isso aconteça, seria necessário um incremento nos programas governamentais de transferência de renda para atacar o problema de modo emergencial.
O principal programa de transferência de renda é o Bolsa Família, que vincula o pagamento à frequência escolar, algo considerado fundamental para evitar que os jovens deixem a escola. O auxílio emergencial também é considerado um dos marcos durante o atual período. Mas a avaliação é de que é necessário maior investimento. O município de Porto Alegre até pretende lançar um programa de complementação de renda de forma experimental, mas diz não ter capacidade financeira de uma iniciativa mais ampla.
– Nós somos defensores da garantia de uma renda básica, mas não essa de R$ 250 (auxílio emergencial). Com esse valor, você compra um botijão de gás e alguma coisa mínima e já terminou o dinheiro que deveria servir para passar 30 dias. A renda básica é fundamental na pandemia e no momento imediatamente posterior, porque a recomposição dos postos de trabalho é lenta – diz a secretária do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil (FNETI), Isa Oliveira.
O Ministério Público do Trabalho (MPT) lembra uma alternativa que pode ao menos amenizar o problema. É o programa Jovem Aprendiz, que oferece um primeiro contato com o mundo do trabalho, com vínculo empregatício, para jovens de 14 a 24 anos.
De acordo com a Procuradoria Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, todas as empresas com sete funcionários ou mais e que não sejam de pequeno porte deveriam ter um percentual mínimo de 5% de jovens aprendizes em seus quadros. Caso fosse cumprido, isso representaria o total de 57,4 mil jovens aprendizes no Estado. No entanto, apenas 50% das vagas está ocupada. O número da Capital é semelhante, com 5,4 mil contratados num universo em que o mínimo deveria ser o dobro.
– Se a gente pudesse suprir esses 50% com a quantidade de adolescentes da faixa de 14 anos, imagina o quanto nós teríamos de adolescentes capacitados e com mais condições. O nível familiar certamente melhoraria. É incrível o quanto isso repercute dentro de uma família – comenta a procuradora regional do trabalho Silvana Ribeiro Martins.
Silvana é responsável no Rio Grande do Sul pela Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho de Crianças e Adolescentes (Coordinfância). Segundo ela, o MPT trabalha em conjunto com outras instituições e em fóruns estaduais orientando e dialogando sobre as melhores políticas a serem adotadas, além de atuar com a fiscalização de situações irregulares. Desde o início da pandemia, o órgão tem promovido capacitações regionalizadas com prefeituras a partir da identificação de aumento de casos de trabalho infantil para ampliar a oferta de vagas no programa.
Uma vaga longe das ruas é o sonho de Gustavo*, o garoto que trabalha 13 horas por dia na sinaleira da Zona Norte e que foi citado na abertura desta reportagem (leia sobre ele clicando aqui). Ele sente todos os dias o cansaço da rotina de luta por sobrevivência.
– Se tivesse outro emprego, outra coisa para fazer, eu não estaria aqui. É cansativo. Qualquer coisa de menor aprendiz, empacotador, puxar carrinho no mercado. Tem dias em que a gente não acorda bem e é obrigado a levar o sustento para casa. Não seria que nem aqui, me matar todo dia, sair tarde e chegar em casa com pouco dinheiro.
Leia as outras partes desta reportagem:
De volta às sinaleiras de Porto Alegre, trabalho infantil tem consequências devastadoras, mas pode ser solucionado
Sozinhos ou com a família inteira: GZH conta as histórias de crianças e adolescentes que trabalham nas sinaleiras de Porto Alegre
Em Porto Alegre
334 foi a quantidade de crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil abordadas pela primeira vez pela Fasc em Porto Alegre em 2020. Em 2019, eram 120. Ou seja, houve um aumento de 178,3%. Fonte: Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc)
No mundo
160 milhões de crianças e adolescentes estavam em situação de trabalho infantil em todo o mundo em 2020. Isso significa 8,4 milhões de crianças e adolescentes a mais, se comparado com dados de 2016. Foi a primeira vez que a Unicef identificou aumento desse número no século 21. Fonte: Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef)
Em áudio
Ouça um resumo dessa reportagem que foi ao ar no programa Gaúcha Atualidade, da Rádio Gaúcha.