Que é preciso achatar a curva de contaminações pelo coronavírus para evitar uma corrida aos hospitais e, por consequência, um colapso do sistema de saúde, pouca gente discorda. Mas que curva é essa?
Pesquisadores brasileiros sugerem que, na verdade, são duas curvas: a dos mais ricos, já algo mais controlada, e a dos mais pobres, em franca ascensão. Isso faz com que as medidas de isolamento tenham menos apoio na elite e que haja uma pressão maior para se afrouxar as restrições, colocando os mais pobres em risco.
É o que sugerem os pesquisadores Guilherme Lichand (professor da Universidade de Zurique), Onício Leal-Neto (pós-doutorando em Zurique) e Guilherme Prokisch (matemático pela Universidade de São Paulo) em artigo que analisa dados da plataforma Brasil Sem Corona, aplicativo que tenta captar o avanço do vírus de acordo com sintomas relatados pela população. O método é chamado vigilância epidemiológica participativa.
Os dados levantados pelos pesquisadores mostram que as pessoas de classes sociais A e B (com renda domiciliar acima de R$ 8.159) relatam ter cada vez menos sintomas. Já as pessoas de classe D e E (renda abaixo de R$ 1.892) relatam mais sintomas ao longo das semanas.
Quando se olha os dados de onde estão essas pessoas com mais sintomas da doença, o aplicativo mostra uma concentração maior de casos sintomáticos em regiões mais vulneráveis da cidade.
"É natural esperar que, diante disso, a pressão das classes mais altas para reabertura da economia se tornem mais fortes, com custos potenciais bastante altos para aqueles que ainda estão expostos à curva em fase de crescimento do número de casos, e sem as mesmas condições de acessar equipamentos de saúde com capacidade suficiente para atender demanda elevada", conclui relatório dos pesquisadores.
Os dados da plataforma mostram ainda que, enquanto 76% das pessoas das classes D e E dizem que estão há mais de 20 dias em quarentena, nas classes A e B essa proporção é de 38%. Entre os mais pobres, 83% relataram sair apenas para atividades essenciais, enquanto entre os mais ricos o percentual foi de 35%.
— Quem é de classes mais pobres é forçado a sair com um pouco mais de frequência, não tem a mesma condição de pedir delivery, por exemplo. Mas quando faz isso, o tem feito só para fins essenciais – tem se atentado mais a quarentena — afirma Linchand.
— A gente começou com essa história de que a doença era democrática, que não respeitava limites ou fronteiras. Mas é inegável que acaba sendo um desafio maior para as pessoas de renda mais baixa. Não é uma vantagem do coronavírus, existe uma série de doenças que são negligenciadas por não terem uma prevalência em pessoas com renda maior. Além da doença em si, existe a percepção do risco da doença, que é um fator preponderante para que o indivíduo entenda o cuidado de não ser um transmissor. — diz Leal-Neto, doutor em saúde publica e epidemiologia pela Fundacao Oswaldo Cruz.
Vigilância Participativa
Os pesquisadores usaram informações de usuários do Colab, startup que faz parcerias com governos e, em épocas normais, é usado mais como um aplicativo de celular para ajudar na zeladoria urbana, onde os usuários indicam problemas na cidade, como lixeiras quebradas e buracos na rua. A empresa se juntou com a Epitrack, uma companhia especializada em detectar epidemias. Da junção saiu o Brasil Sem Corona, que reúne e analisa as respostas dos participantes.
Diariamente, o aplicativo estimula os usuários a responderem a algumas perguntas, como "Você está se sentindo bem?", "Você já fez teste laboratorial para covid-19", "Você reside com uma pessoa com mais de 60 anos?" e "Quais são seus intomas?", entre outras. Além das respostas, a plataforma leva em conta ainda o deslocamento do aparelho.
A análise feita pelos pesquisadores usou informações de usuários da cidade paulista Santo André, onde o app tem parceria com a prefeitura e os resultados seriam mais consistentes, diz Linchand. Do total de cerca de 1,5 mil usuários da cidade, o grupo analisou as respostas de 350 deles, grupo do qual tinham dados socioeconômicos.
— O dado não é perfeito. Qualquer aplicativo vai ter uma amostra mais jovem e com renda maior do que a população, mas tudo isso foi levado em conta — afirma Linchand, doutor em economia política e governo pela Universidade Harvard.
— A ideia é complementar aos sistemas de vigilância epidemiológica tradicionais, que só contabilizam o doente quando a pessoa chega no sistema de saúde. Mas entre ter o sintoma e chegar ao sistema, existe uma lacuna, que é onde mora a subnotificação — diz Leal-Neto.
O pesquisador conta que a ideia da vigilância participativa surgiu em 2003 na Europa, quando um grupo de países decidiu perguntas a internautas se tinham sintomas da influenza. No Brasil, foi usado pela primeira vez em 2014, durante a Copa do Mundo, numa plataforma adotada pelo próprio Ministério da Saúde para rastrear o surto de sarampo.
Os dados têm limitações e são apenas complementares, reconhecem os estudiosos.
— O Brasil sem Corona consegue dar um diagnóstico do Brasil? Não. Mas consegue apresentar tendências em São Paulo, Santo André, Teresina, Caruaru, Rio de Janeiro, cidades onde a base é maior. A ideia é tentar capturar esses casos que não vão para o sistema. E não é um autodiagnóstico, a plataforma não responde se a pessoa está com a covid-19 ou não — salienta o epidemiologista.